Entrevista a Virginia Henriques Calado,
" A Experiência do mundo na Macrobiótica"
Virginia Henriques Calado investigadora da Universidade de Lisboa – Instituto de Ciências Sociais, Doutorada em Antropologia Social e Cultural na Universidade de Lisboa, com uma tese sobre Macrobiótica, fala aos leitores da Revista Progredir sobre a importância da Macróbiotica no mundo de hoje.
Progredir: Virgínia, para os leitores que não a conhecem, quatro palavras que a definem como pessoa?
Virginia Henriques Calado: Curiosa, empenhada, persistente, tímida.
Progredir: Fale-nos um pouco do seu percurso de vida?
Virginia Henriques Calado: Nasci na Beira Baixa e aí vivi até aos 18 anos. Concluí o ensino secundário na Escola Secundária Frei Heitor Pinto, Covilhã, com mais dúvidas do que certezas sobre o que fazer com o futuro. O interior era, para mim, nos anos 80, lugar de sufoco e desejo de outras paisagens: físicas, sociais, emocionais, culturais. Julgo que para muitos dos que lá vivem ainda é esse lugar de compressão.
A falta de atenção pelo Interior não se alterou substancialmente e os problemas da interioridade (na verdade, mais social do que geográfica) continuam a sentir-se. Mesmo tendo participado em projetos culturais na Covilhã, como a criação de uma revista, (Sub)Versões — uma resposta meio desalinhada à monotonia cultural da cidade — o imperativo para sair foi mais forte. Tendo optado no secundário pela vertente de estudos humanísticos, não sentia na altura atração nenhuma por cursos como Direito, que me pareciam extremamente aborrecidos e conservadores.
Escolhi Sociologia no ISCTE por pensar que me proporcionaria uma visão mais comprometida com causas sociais. Sem grandes preocupações com saídas profissionais, mudei-me para Lisboa. Só depois de estar inscrita no curso, fui seduzida pela Antropologia e pelo alargar de mundos que ela me proporcionava. As abordagens mais qualitativas e a metodologia etnográfica, com recurso a trabalho de terreno, ofereciam-me percursos de investigação bem mais fascinantes que os inquéritos por questionário que via na Sociologia.
A atração pela diferença e pela incrível diversidade nos modos de categorização e organização/desorganização da realidade social, um desafio constante à (in)compreensão do mundo, fizeram o resto. Alguns bons professores ajudaram. Acabei formando-me em Antropologia Social, sem saber muito bem o que fazer na vida com o curso que tinha escolhido. Comecei por ensinar Geografia no ensino secundário sem nenhuma preparação de caracter pedagógico ou experiência de ensino. Uma aventura!
Decidi fazer mestrado, e, na altura, anos 90, pude beneficiar de uma política de maior apoio à investigação que foi impulsionada por José Mariano Gago, o que se traduziria numa bolsa de investigação. Mariano Gago é, sem dúvida, uma referência fundamental da política científica nacional, a ele se deve a passagem de um sistema científico atávico, e praticamente invisível, para um quadro de maiores incentivos à investigação, com aumento do número de investigadores, dos produtos de investigação e também com maior visibilidade internacional.
A temática de investigação que então defini recaiu sobre a Serra da Estrela; movia-me sobretudo o desejo de esclarecer o processo através do qual um espaço praticamente desconhecido no final do século XIX se tinha transformando num lugar a visitar e enaltecer. A explicitação desse processo, que contou muito com a orientação e palavras inspiradoras de Joaquim Pais de Brito, passou muito pela análise de documentos relativos à Expedição Científica realizada à Serra da Estrela em 1881, viagem de estudo organizada pela Sociedade de Geografia que parecia uma expedição para territórios ultramarinos. Passou também pela análise de relatos posteriores relativos a viagens à Serra da Estrela. O trabalho de análise de discursos e imagens, sobretudo de postais ilustrados que circularam pelo país, permitiram-me destacar a relevância deste tipo de meios na construção social do espaço. Acabei de escrever a dissertação de mestrado com um filho ao colo. Um filho altera significativamente a maneira como vivemos.
Vivi no Minho e em Trás-os-Montes. Ensinei no Ensino Superior, orientei alunos e coordenei atividades científicas e pedagógicas. Doutorei-me no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2012, onde tive o privilégio do acompanhamento e orientação de Cristiana Bastos, antropóloga que coordena atualmente um inovador projeto de investigação, o Colour of Labour, projeto apoiado pelo Conselho Europeu de Investigação; que se centra nas migrações e no trabalho, na relevância da posição estrutural no trabalho para a produção de formas de racialização. No ICS, fiz uma tese em Antropologia Social e Cultural sobre a macrobiótica. Diversas pessoas que contactei que seguiam a macrobiótica ficavam admiradas com o facto de a academia ter aceitado um projeto de investigação sobre esta temática, mas tal nada tem de surpreendente em áreas como a Antropologia ou Sociologia, visto que toda a atividade humana ou interação entre humanos e não humanos pode constituir motivo de interesse nestas áreas.
Com a Troika no país e os efeitos devastadores que a gestão da crise causou, senti necessidade de uma participação política mais ativa e envolvi-me, como independente, em projetos políticos como o Cidadania em Movimento — Braga (candidatura autárquica independente em 2013) e a candidatura às legislativas Livre/Tempo de Avançar (2015). Mantenho ligação com diversos movimentos cívicos e continuo muito atenta ao que se passa. Aspiro a uma sociedade mais solidária e mais justa no uso e distribuição dos recursos.
Atualmente, sou investigadora no ICS-UL, onde desenvolvo pesquisa na área da Antropologia da alimentação e trabalho sobre (in)segurança alimentar com o apoio de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Progredir: O que a motiva na sua área de trabalho?
Virginia Henriques Calado: Aceder a diferentes universos de compreensão e produção de sentido. Ter a possibilidade de contribuir para esclarecer processos através dos quais vamos atribuindo sentido ao mundo e vamos classificando e ordenando a realidade. Desmontar e desocultar processos através dos quais se definem visões do mundo e se estabelecem modos de organização social são algumas das minhas principais motivações.
Após anos de pesquisa sobre a macrobiótica, em 2013 decidi prosseguir a investigação sobre questões ligadas à alimentação, agora dirigidas a programas alimentares apoiados pelas Nações Unidas. Iniciei pesquisa em Moçambique, na província de Nampula, focando-me no PRONAE, um programa piloto de alimentação escolar nacional, procurando analisar o modo como tinha sido construído e colocado em prática. Centrei-me em questões ligadas à insegurança alimentar (no sentido de privação de alimentos adequados) e no modo como os programas de alimentação escolar eram elaborados para ultrapassar essa insegurança. Localmente, as razões afirmadas para explicar a insegurança alimentar na região eram diversas e a perceção sobre a origem do fenómeno variável, desde a referência aos tabus alimentares que conduziriam ao evitamento de certos alimentos, às alterações climáticas, à afirmação da incapacidade dos autóctones de gerirem de forma racional os seus recursos ou à falta de condições de armazenamento de alimentos entre os agricultores, pude ouvir várias «explicações». Para muitos dos habitantes de Nampula ter um frigorífico é um luxo, mesmo para os que têm energia elétrica em casa. Um dos meus interlocutores dizia-me que quando comprasse um aparelho de refrigeração em vez de um frigorífico compraria uma arca congeladora visto que, com a baixa potência elétrica a que tinha acesso, um frigorífico não cumpriria a finalidade da refrigeração. Um nutricionista que entrevistei apontava como uma das razões para a insegurança alimentar as elevadas taxas de divórcios/separações na região bem como o facto de as meninas serem mães muito cedo. O fenómeno é, na verdade, bastante complexo, e os terrenos agrícolas da região têm sido alvo de grande atenção. Analisar e compreender como se legitimam/ questionam formas socias bem como as relações que lhes são inerentes, são aspetos que, sem dúvida, motivam o meu trabalho enquanto investigadora.
Progredir: Como nasce o interesse pela Macrobiótica?
Virginia Henriques Calado: Pesquisar sobre alimentação foi algo que sempre me entusiasmou e a macrobiótica, não se confinando apenas a questões alimentares, proporcionava-me essa possibilidade. Ter encontrado, nas aulas de yoga, José Oliveira (professor de yoga seguidor da macrobiótica, antigo dirigente da Unimave e referência fundamental em Braga na divulgação de conteúdos relativos ao yoga, shiatsu e macrobiótica), acabou por funcionar como elemento desencadeador para um processo de investigação sobre a macrobiótica. O primeiro encontro com Francisco Varatojo e Alda Pereira, no início da década de 2000, far-se-ia também em Braga. Com eles fiz as minhas primeiras aprendizagens sobre a macrobiótica e fui sendo introduzida nesta cosmovisão e neste universo mais alternativo. Seduziam-me as formas de classificação e interpretação do mundo, dos alimentos, das doenças; a fabulosa capacidade de produzir sentidos e de reencantar o mundo. Um certo exotismo associado à macrobiótica e ao modo como ela se tinha tornado relevante em Portugal acabou também por contar na identificação da macrobiótica como assunto relevante para um projeto de pesquisa a desenvolver no âmbito de um curso de doutoramento. Aprendi muito e introduzi novos produtos alimentares e ensinamentos no meu quotidiano. Não me transformei, todavia, numa seguidora da macrobiótica. Sempre tive um certo ceticismo em relação a qualquer proposta de orientação no mundo.
Progredir: Virgínia, para os leitores que não a conhecem, quatro palavras que a definem como pessoa?
Virginia Henriques Calado: Curiosa, empenhada, persistente, tímida.
Progredir: Fale-nos um pouco do seu percurso de vida?
Virginia Henriques Calado: Nasci na Beira Baixa e aí vivi até aos 18 anos. Concluí o ensino secundário na Escola Secundária Frei Heitor Pinto, Covilhã, com mais dúvidas do que certezas sobre o que fazer com o futuro. O interior era, para mim, nos anos 80, lugar de sufoco e desejo de outras paisagens: físicas, sociais, emocionais, culturais. Julgo que para muitos dos que lá vivem ainda é esse lugar de compressão.
A falta de atenção pelo Interior não se alterou substancialmente e os problemas da interioridade (na verdade, mais social do que geográfica) continuam a sentir-se. Mesmo tendo participado em projetos culturais na Covilhã, como a criação de uma revista, (Sub)Versões — uma resposta meio desalinhada à monotonia cultural da cidade — o imperativo para sair foi mais forte. Tendo optado no secundário pela vertente de estudos humanísticos, não sentia na altura atração nenhuma por cursos como Direito, que me pareciam extremamente aborrecidos e conservadores.
Escolhi Sociologia no ISCTE por pensar que me proporcionaria uma visão mais comprometida com causas sociais. Sem grandes preocupações com saídas profissionais, mudei-me para Lisboa. Só depois de estar inscrita no curso, fui seduzida pela Antropologia e pelo alargar de mundos que ela me proporcionava. As abordagens mais qualitativas e a metodologia etnográfica, com recurso a trabalho de terreno, ofereciam-me percursos de investigação bem mais fascinantes que os inquéritos por questionário que via na Sociologia.
A atração pela diferença e pela incrível diversidade nos modos de categorização e organização/desorganização da realidade social, um desafio constante à (in)compreensão do mundo, fizeram o resto. Alguns bons professores ajudaram. Acabei formando-me em Antropologia Social, sem saber muito bem o que fazer na vida com o curso que tinha escolhido. Comecei por ensinar Geografia no ensino secundário sem nenhuma preparação de caracter pedagógico ou experiência de ensino. Uma aventura!
Decidi fazer mestrado, e, na altura, anos 90, pude beneficiar de uma política de maior apoio à investigação que foi impulsionada por José Mariano Gago, o que se traduziria numa bolsa de investigação. Mariano Gago é, sem dúvida, uma referência fundamental da política científica nacional, a ele se deve a passagem de um sistema científico atávico, e praticamente invisível, para um quadro de maiores incentivos à investigação, com aumento do número de investigadores, dos produtos de investigação e também com maior visibilidade internacional.
A temática de investigação que então defini recaiu sobre a Serra da Estrela; movia-me sobretudo o desejo de esclarecer o processo através do qual um espaço praticamente desconhecido no final do século XIX se tinha transformando num lugar a visitar e enaltecer. A explicitação desse processo, que contou muito com a orientação e palavras inspiradoras de Joaquim Pais de Brito, passou muito pela análise de documentos relativos à Expedição Científica realizada à Serra da Estrela em 1881, viagem de estudo organizada pela Sociedade de Geografia que parecia uma expedição para territórios ultramarinos. Passou também pela análise de relatos posteriores relativos a viagens à Serra da Estrela. O trabalho de análise de discursos e imagens, sobretudo de postais ilustrados que circularam pelo país, permitiram-me destacar a relevância deste tipo de meios na construção social do espaço. Acabei de escrever a dissertação de mestrado com um filho ao colo. Um filho altera significativamente a maneira como vivemos.
Vivi no Minho e em Trás-os-Montes. Ensinei no Ensino Superior, orientei alunos e coordenei atividades científicas e pedagógicas. Doutorei-me no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2012, onde tive o privilégio do acompanhamento e orientação de Cristiana Bastos, antropóloga que coordena atualmente um inovador projeto de investigação, o Colour of Labour, projeto apoiado pelo Conselho Europeu de Investigação; que se centra nas migrações e no trabalho, na relevância da posição estrutural no trabalho para a produção de formas de racialização. No ICS, fiz uma tese em Antropologia Social e Cultural sobre a macrobiótica. Diversas pessoas que contactei que seguiam a macrobiótica ficavam admiradas com o facto de a academia ter aceitado um projeto de investigação sobre esta temática, mas tal nada tem de surpreendente em áreas como a Antropologia ou Sociologia, visto que toda a atividade humana ou interação entre humanos e não humanos pode constituir motivo de interesse nestas áreas.
Com a Troika no país e os efeitos devastadores que a gestão da crise causou, senti necessidade de uma participação política mais ativa e envolvi-me, como independente, em projetos políticos como o Cidadania em Movimento — Braga (candidatura autárquica independente em 2013) e a candidatura às legislativas Livre/Tempo de Avançar (2015). Mantenho ligação com diversos movimentos cívicos e continuo muito atenta ao que se passa. Aspiro a uma sociedade mais solidária e mais justa no uso e distribuição dos recursos.
Atualmente, sou investigadora no ICS-UL, onde desenvolvo pesquisa na área da Antropologia da alimentação e trabalho sobre (in)segurança alimentar com o apoio de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Progredir: O que a motiva na sua área de trabalho?
Virginia Henriques Calado: Aceder a diferentes universos de compreensão e produção de sentido. Ter a possibilidade de contribuir para esclarecer processos através dos quais vamos atribuindo sentido ao mundo e vamos classificando e ordenando a realidade. Desmontar e desocultar processos através dos quais se definem visões do mundo e se estabelecem modos de organização social são algumas das minhas principais motivações.
Após anos de pesquisa sobre a macrobiótica, em 2013 decidi prosseguir a investigação sobre questões ligadas à alimentação, agora dirigidas a programas alimentares apoiados pelas Nações Unidas. Iniciei pesquisa em Moçambique, na província de Nampula, focando-me no PRONAE, um programa piloto de alimentação escolar nacional, procurando analisar o modo como tinha sido construído e colocado em prática. Centrei-me em questões ligadas à insegurança alimentar (no sentido de privação de alimentos adequados) e no modo como os programas de alimentação escolar eram elaborados para ultrapassar essa insegurança. Localmente, as razões afirmadas para explicar a insegurança alimentar na região eram diversas e a perceção sobre a origem do fenómeno variável, desde a referência aos tabus alimentares que conduziriam ao evitamento de certos alimentos, às alterações climáticas, à afirmação da incapacidade dos autóctones de gerirem de forma racional os seus recursos ou à falta de condições de armazenamento de alimentos entre os agricultores, pude ouvir várias «explicações». Para muitos dos habitantes de Nampula ter um frigorífico é um luxo, mesmo para os que têm energia elétrica em casa. Um dos meus interlocutores dizia-me que quando comprasse um aparelho de refrigeração em vez de um frigorífico compraria uma arca congeladora visto que, com a baixa potência elétrica a que tinha acesso, um frigorífico não cumpriria a finalidade da refrigeração. Um nutricionista que entrevistei apontava como uma das razões para a insegurança alimentar as elevadas taxas de divórcios/separações na região bem como o facto de as meninas serem mães muito cedo. O fenómeno é, na verdade, bastante complexo, e os terrenos agrícolas da região têm sido alvo de grande atenção. Analisar e compreender como se legitimam/ questionam formas socias bem como as relações que lhes são inerentes, são aspetos que, sem dúvida, motivam o meu trabalho enquanto investigadora.
Progredir: Como nasce o interesse pela Macrobiótica?
Virginia Henriques Calado: Pesquisar sobre alimentação foi algo que sempre me entusiasmou e a macrobiótica, não se confinando apenas a questões alimentares, proporcionava-me essa possibilidade. Ter encontrado, nas aulas de yoga, José Oliveira (professor de yoga seguidor da macrobiótica, antigo dirigente da Unimave e referência fundamental em Braga na divulgação de conteúdos relativos ao yoga, shiatsu e macrobiótica), acabou por funcionar como elemento desencadeador para um processo de investigação sobre a macrobiótica. O primeiro encontro com Francisco Varatojo e Alda Pereira, no início da década de 2000, far-se-ia também em Braga. Com eles fiz as minhas primeiras aprendizagens sobre a macrobiótica e fui sendo introduzida nesta cosmovisão e neste universo mais alternativo. Seduziam-me as formas de classificação e interpretação do mundo, dos alimentos, das doenças; a fabulosa capacidade de produzir sentidos e de reencantar o mundo. Um certo exotismo associado à macrobiótica e ao modo como ela se tinha tornado relevante em Portugal acabou também por contar na identificação da macrobiótica como assunto relevante para um projeto de pesquisa a desenvolver no âmbito de um curso de doutoramento. Aprendi muito e introduzi novos produtos alimentares e ensinamentos no meu quotidiano. Não me transformei, todavia, numa seguidora da macrobiótica. Sempre tive um certo ceticismo em relação a qualquer proposta de orientação no mundo.
Progredir: No seu Livro "A Proposta Macrobiótica da Experiência do Mundo" que visão pretende transmitir ao leitor?
Virginia Henriques Calado: Neste livro procuro caraterizar uma visão do mundo e analisar o processo social que conduziu à construção, divulgação e aceitação da macrobiótica na Europa e nos EUA. Centro-me assim na construção de um quadro de pensamento e na importância da circulação de indivíduos, ideias e mercadorias para compreender o alastramento da macrobiótica. Analiso com detalhe as circunstâncias do aparecimento e desenvolvimento da macrobiótica em Portugal, nos anos 1960, e os movimentos que gerou. Detenho-me no modo como a macrobiótica é ensinada e divulgada em Portugal, nos seus adeptos, nas questões que permite colocar quando pensada como forma que integra um espaço social alimentar mais vasto. Analiso ainda a macrobiótica enquanto sistema terapêutico não convencional, visto que na macrobiótica se propõem formas de tratamento. Destaco as relações, ou inexistência delas, entre lugares centrais de produção de conhecimento (Ciências da Nutrição e Biomedicina) e as margens (a macrobiótica), procurando evidenciar dinamismos e contaminações entre discursos científicos e não científicos.
Progredir: Qual o seu Lema de Vida?
Virginia Henriques Calado: Lema de vida enquanto princípio orientador no qual o meu dia-a-dia esteja ancorado, não tenho. Nem tal é matéria com que alguma vez me tenha ocupado. Talvez por entender que nada está definitivamente assegurado. Indivíduos e circunstâncias são realidades dinâmicas, desafiando com frequência as convicções mais arreigadas. O caráter impermanente, mas também cíclico, do devir que nos carateriza, fazem do passado uma fonte de ensinamentos.
Progredir: O tema deste mês da Revista Progredir é “Comunicação”. Na sua opinião como podemos utilizar os fundamentos da Macrobiótica para uma comunicação mais eficaz sobre as vantagens e benefícios de uma mudança alimentar?
Virginia Henriques Calado: Os fundamentos da macrobiótica estão relacionados com a observação da terra e dos ciclos cósmicos associados às variações sazonais, com a interpretação que foi feita do taoísmo (a visão dicotómica em termos de yin e de yang), budismo, xintoísmo e do movimento japonês shoku-yo, movimento que promovia a identidade nacional japonesa através da defesa de uma forma de alimentação considerada tradicional, sem o leite, manteiga e carne que a ciência da nutrição desenvolvida no ocidente aconselhava.
Brevemente, a macrobiótica resulta da interpretação de diferentes elementos provenientes destes quadros orientadores, não se esgotando neles, elaborada por Georges Ohsawa, e que conduziu à visão holística que consagra a interdependência de todos os fenómenos. A proposta de Ohsawa de uma visão integrada do universo assenta no princípio unificador, na ideia de que fisicalidade e espiritualidade, materialidade e dissolução, participam de um mesmo processo, de uma mesma realidade, não devendo, por conseguinte, ser perspetivados de forma disjuntiva. Ohsawa defendeu que a alimentação é uma forma de incorporarmos o universo e que somos o resultado dos alimentos que ingerimos, sendo a qualidade dos nossos pensamentos e o desenvolvimento da espiritualidade dependente desses alimentos.
Estas convicções fazem parte dos fundamentos da macrobiótica, evidenciam que a macrobiótica, enquanto cosmovisão, não se reduz às questões alimentares. Estes fundamentos e outros aspetos mais prosaicos relativos ao modo de viver dentro da prática macrobiótica (como por exemplo a questão da escolha de alimentos) têm sido reinterpretados e a macrobiótica não tem permanecido estática, demonstrando capacidade para se atualizar e integrar nova informação. É pois partindo destes fundamentos, a que aludo de forma muito simplificada, que me pronuncio sobre as vantagens e benefícios de uma mudança alimentar.
Para muitos dos que contactei durante a pesquisa efetuada, a macrobiótica representou uma aprendizagem para um modo de vida mais saudável, sendo que alguns recuperaram de graves problemas de saúde com a adoção do estilo alimentar associado à macrobiótica. Porém, tal nem sempre acontece. As mudanças alimentares proporcionadas pela macrobiótica representam o ampliar do leque de alimentos que entram na cozinha, dado que a aprendizagem da macrobiótica leva à introdução na alimentação de cereais (cevada, millet, trigo sarraceno, quinoa…), leguminosas (diversos tipos de feijão, soja…), vegetais (algas, raízes…) e condimentos (miso, molho de soja, vinagre de ameixa umeboshi…) que habitualmente não são usados na «cozinha portuguesa». Há assim uma maior diversidade de alimentos que são usados bem como de técnicas para os confecionar. Aprende-se também a preferir os alimentos da época e da região, de preferência integrais e pouco processados, a conjugar as cores e os sabores dos alimentos, a identificar os seus efeitos no corpo. Poderão não ser efetivos esses efeitos, mas são comunicados por muitos dos que seguem este tipo de alimentação como sendo-o efetivamente, como podendo promover uma energia mais yin ou mais yang, mais feminina ou mais masculina. Os fritos podem ser mencionados como causando algum relaxamento e dispersão mental, mas o consumo de raízes (cenouras, cebolas, nabos…) como proporcionando maior concentração.
Se pensarmos ainda nas transições alimentares como algo indispensável para menorizar os efeitos das alterações climáticas e para promover um modo de vida mais sustentável, a macrobiótica pode ser uma boa fonte de apoio e ensinamentos para comunicar tal ideia, pois apela ao respeito pela natureza, a uma visão mais integrada e sustentável do ponto de vista ambiental, a um menor consumo de produtos de origem animal (sobretudo carne, ovos e produtos lácteos) e a uma diminuição de consumo de alimentos muito processados. Por outro lado, há na macrobiótica um treino com técnicas de confeção que permitem encontrar boas conjugações entre alimentos e formas de exaltar os seus sabores, de maneira a elaborar pratos menos monótonos e com melhor apresentação.
Progredir: Uma mensagem para os nossos leitores?
Virginia Henriques Calado: A vida de cada um não resulta apenas de ações racionais, de escolhas individuais ou de responsabilidade individual, depende também do lugar em que nascemos e dos sistemas sociais em que nos encontramos integrados, ou desintegrados, e nos movemos.
Virginia Henriques Calado
www.ics.ulisboa.pt/pessoa/virginia-henriques-calado
Virginia Henriques Calado: Neste livro procuro caraterizar uma visão do mundo e analisar o processo social que conduziu à construção, divulgação e aceitação da macrobiótica na Europa e nos EUA. Centro-me assim na construção de um quadro de pensamento e na importância da circulação de indivíduos, ideias e mercadorias para compreender o alastramento da macrobiótica. Analiso com detalhe as circunstâncias do aparecimento e desenvolvimento da macrobiótica em Portugal, nos anos 1960, e os movimentos que gerou. Detenho-me no modo como a macrobiótica é ensinada e divulgada em Portugal, nos seus adeptos, nas questões que permite colocar quando pensada como forma que integra um espaço social alimentar mais vasto. Analiso ainda a macrobiótica enquanto sistema terapêutico não convencional, visto que na macrobiótica se propõem formas de tratamento. Destaco as relações, ou inexistência delas, entre lugares centrais de produção de conhecimento (Ciências da Nutrição e Biomedicina) e as margens (a macrobiótica), procurando evidenciar dinamismos e contaminações entre discursos científicos e não científicos.
Progredir: Qual o seu Lema de Vida?
Virginia Henriques Calado: Lema de vida enquanto princípio orientador no qual o meu dia-a-dia esteja ancorado, não tenho. Nem tal é matéria com que alguma vez me tenha ocupado. Talvez por entender que nada está definitivamente assegurado. Indivíduos e circunstâncias são realidades dinâmicas, desafiando com frequência as convicções mais arreigadas. O caráter impermanente, mas também cíclico, do devir que nos carateriza, fazem do passado uma fonte de ensinamentos.
Progredir: O tema deste mês da Revista Progredir é “Comunicação”. Na sua opinião como podemos utilizar os fundamentos da Macrobiótica para uma comunicação mais eficaz sobre as vantagens e benefícios de uma mudança alimentar?
Virginia Henriques Calado: Os fundamentos da macrobiótica estão relacionados com a observação da terra e dos ciclos cósmicos associados às variações sazonais, com a interpretação que foi feita do taoísmo (a visão dicotómica em termos de yin e de yang), budismo, xintoísmo e do movimento japonês shoku-yo, movimento que promovia a identidade nacional japonesa através da defesa de uma forma de alimentação considerada tradicional, sem o leite, manteiga e carne que a ciência da nutrição desenvolvida no ocidente aconselhava.
Brevemente, a macrobiótica resulta da interpretação de diferentes elementos provenientes destes quadros orientadores, não se esgotando neles, elaborada por Georges Ohsawa, e que conduziu à visão holística que consagra a interdependência de todos os fenómenos. A proposta de Ohsawa de uma visão integrada do universo assenta no princípio unificador, na ideia de que fisicalidade e espiritualidade, materialidade e dissolução, participam de um mesmo processo, de uma mesma realidade, não devendo, por conseguinte, ser perspetivados de forma disjuntiva. Ohsawa defendeu que a alimentação é uma forma de incorporarmos o universo e que somos o resultado dos alimentos que ingerimos, sendo a qualidade dos nossos pensamentos e o desenvolvimento da espiritualidade dependente desses alimentos.
Estas convicções fazem parte dos fundamentos da macrobiótica, evidenciam que a macrobiótica, enquanto cosmovisão, não se reduz às questões alimentares. Estes fundamentos e outros aspetos mais prosaicos relativos ao modo de viver dentro da prática macrobiótica (como por exemplo a questão da escolha de alimentos) têm sido reinterpretados e a macrobiótica não tem permanecido estática, demonstrando capacidade para se atualizar e integrar nova informação. É pois partindo destes fundamentos, a que aludo de forma muito simplificada, que me pronuncio sobre as vantagens e benefícios de uma mudança alimentar.
Para muitos dos que contactei durante a pesquisa efetuada, a macrobiótica representou uma aprendizagem para um modo de vida mais saudável, sendo que alguns recuperaram de graves problemas de saúde com a adoção do estilo alimentar associado à macrobiótica. Porém, tal nem sempre acontece. As mudanças alimentares proporcionadas pela macrobiótica representam o ampliar do leque de alimentos que entram na cozinha, dado que a aprendizagem da macrobiótica leva à introdução na alimentação de cereais (cevada, millet, trigo sarraceno, quinoa…), leguminosas (diversos tipos de feijão, soja…), vegetais (algas, raízes…) e condimentos (miso, molho de soja, vinagre de ameixa umeboshi…) que habitualmente não são usados na «cozinha portuguesa». Há assim uma maior diversidade de alimentos que são usados bem como de técnicas para os confecionar. Aprende-se também a preferir os alimentos da época e da região, de preferência integrais e pouco processados, a conjugar as cores e os sabores dos alimentos, a identificar os seus efeitos no corpo. Poderão não ser efetivos esses efeitos, mas são comunicados por muitos dos que seguem este tipo de alimentação como sendo-o efetivamente, como podendo promover uma energia mais yin ou mais yang, mais feminina ou mais masculina. Os fritos podem ser mencionados como causando algum relaxamento e dispersão mental, mas o consumo de raízes (cenouras, cebolas, nabos…) como proporcionando maior concentração.
Se pensarmos ainda nas transições alimentares como algo indispensável para menorizar os efeitos das alterações climáticas e para promover um modo de vida mais sustentável, a macrobiótica pode ser uma boa fonte de apoio e ensinamentos para comunicar tal ideia, pois apela ao respeito pela natureza, a uma visão mais integrada e sustentável do ponto de vista ambiental, a um menor consumo de produtos de origem animal (sobretudo carne, ovos e produtos lácteos) e a uma diminuição de consumo de alimentos muito processados. Por outro lado, há na macrobiótica um treino com técnicas de confeção que permitem encontrar boas conjugações entre alimentos e formas de exaltar os seus sabores, de maneira a elaborar pratos menos monótonos e com melhor apresentação.
Progredir: Uma mensagem para os nossos leitores?
Virginia Henriques Calado: A vida de cada um não resulta apenas de ações racionais, de escolhas individuais ou de responsabilidade individual, depende também do lugar em que nascemos e dos sistemas sociais em que nos encontramos integrados, ou desintegrados, e nos movemos.
Virginia Henriques Calado
www.ics.ulisboa.pt/pessoa/virginia-henriques-calado
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