O lugar da fé nos ritos e na Espiritualidade: o exemplo natalício, por Luís Coelho
O Natal pode ser fonte de ambivalências, sentimentos nefastos e memórias angustiosas, mas é também o palco propício à negociação com todas essas sensações desvirtuadas, a data do reinício, de uma nova fase que vaticinará a mudança e a pacificação com o nosso Eu e com todos os que amamos. É o momento de tocar no outro e dar a palavra da redenção, o gesto do amor incondicional!
Assumindo previamente que a Espiritualidade enquanto "conceito" não iguala a "Religião", e atendo que o contacto com o Esoterismo, no sentido de uma filosofia espiritual profunda e racional, nos torna muitas vezes avessos à aceitação da fé enquanto princípio propulsor de uma vida centrada no Espírito, pode parecer contraditório que venha, de algum modo, defender a imprescindibilidade da fé para a prática devocional e a vivência da iluminação espiritual.
A contradição radica, por assim dizer, na eterna oposição entre fé e razão, sendo que a última é muitas vezes advogada como base necessária e até suficiente para a compreensão integral do processo espiritual, o que, a meu ver, pode resultar numa ilusão, que é a mesma que ancora na presunção de que o pensar do tipo "filosófico" é meramente uma questão de Racionalidade.
Seguindo a Escala de Platão, segundo a qual o acesso à realidade se pode processar por dois níveis - Doxa (opinião) e Epistémi (Razão/Conhecimento) - e atendendo que a Fé ("Pistis") está incluída na Doxa, seria normal considerar, à imagem do que classicamente tem sido feito, que a fé pertence ao domínio do corpo e da mera "confiança" numa suposta verdade mesmo que não comprovada racionalmente como tal, e que a Razão pertence ao domínio do "além do corpo" e requer critérios objectivos de distinção entre diferentes verdades. No sentido esotérico, o Espírito teria mais a ver com esse racional "além do corpo" do que com a fé, considerando esta última como estando mais relacionada com a temática religiosa propriamente dita; assim sendo, também se poderia considerar que as sensações afectas à devoção não relevariam da verdadeira Espiritualidade, mas somente do fenómeno "popular" e exotérico da "Fé".
A perspectiva clássica de oposição Fé vs. Razão, Corpo vs. Espírito, Religião Exotérica vs. Religião Esotérica medra de duas grandes ilusões quase milenares. Uma delas é a consideração de que o Espírito ou o próprio acto do Filosofar pode dispensar o corpo e a sensação, quando, na verdade, todo o acto de Consciência ou Hiper-consciência reitera a existência de um palco somático (senão da própria fé...), se é que não corresponde meramente ao próprio palco neurológico (assumindo-se, assim, a "alma" e o "Espírito" como meras alegorias). A outra ilusão corresponde à errónea pressuposição de que é possível uma vida espiritual sem a inclusão das sensações, emoções, sentimentos, quando, obviamente, a mera compreensão racional da Religião é insuficiente para a prática de uma vida espiritual no ponto de vista, não tanto da renúncia, mas da tolerância e da compaixão.
Daí que é preciso sentir o amor para amar, e tudo isto só é possível se o Eu for amado e tiver sido desde sempre um self estruturado pelo Amor. Sem ter sido amado e sem ser Amor, o Eu não pode amar, não pode tolerar, não pode sequer renunciar ou viver uma vida de dedicação a outrem. Sem a corporeidade, não haveria sequer força trófica para o filosofar, até porque, como digo no agora publicado livro «As Metamorfoses do Espírito» (Apeiron Edições), o acto filosófico-espiritual requer, na verdade, um certo nível de caos interno ou desassossego mental, a angústia de quem busca as estruturas primárias do seu Ser, tal como acontece com os ritos, que são desde sempre um reviver simbólico das origens, da criação, no sentido do "Arché" ou Princípio bíblico.
O ritual é, assim, um pouco como quase tudo o que existe na religião: uma "reactualização nostálgica das origens", para utilizar as palavras de Mircea Eliade. E é indubitável que os ritos são a expressão do simbolismo do retorno à Terra/Natureza (veja-se o exemplo do funeral), às águas primordiais (como no baptismo, em que o mergulho na água implica a transmutação) ou mesmo do regresso ao Paraíso (vejam-se os templos, as torres, os rituais de ascensão) - com o próprio rezar a conceber-se como a "Palavra", que crida e repetida, transforma e constrói a própria Realidade (interna e externa) -, com alguns deles a serem tão antigos quanto as primeiras religiões, que eram aquelas em que se simbolizava/cultuava a união do homem à natureza e aos ciclos ou estações naturais (por exemplo, a reencarnação e a própria noção cíclica de tempo, muito importantes para os orientais, sobrevêm determinantemente da vivência dos ciclos das colheitas ou dos ciclos comportamentais dos animais e até da intimidade lunar feminina).
O próprio Natal era festejado já antes da Era Cristã em associação ao início do ano (do ciclo solar), com a entrada no solstício de Inverno, só mais tarde adaptado pela Igreja Católica no séc. III da nossa Era para a conversão dos povos pagãos sob o domínio do Império Romano. E até as liturgias (assim como o 25 de Dezembro enquanto data na realidade pouco provável do nascimento de Jesus) reiteram o rito, incluindo uma simbologia riquíssima proveniente de diversas culturas e religiões da Pérsia e da Índia.
A fé é assim uma força motriz muito antiga, e que em conjunto com simbolismos e rituais muitas vezes não consciencializados como tal, tem ajudado a manter e a fecundar o tecido religioso das culturas, se bem que muitas vezes por vias que mancham definitivamente o objecto mais belo e prístino da Espiritualidade.
É bem verdade que a devoção perante a imagem do Mestre Jesus e dos seus ensinamentos, aceites com a fé própria de quem condescende a sua vontade à força verdadeiramente benigna do profeta messiânico, não desmerece aplausos, mas o risco dessa fé resvalar para a cegueira "confortável", acrítica, dogmática e destruidora é enorme. Veja-se o desempenho da Igreja Católica em milénios de uma História de perseguições, até mesmo da riqueza da cultura oriental e greco-latina da qual vieram muitos preceitos da religião oficial de Cristo (sem que a Igreja admita sequer tais origens ou influências), e até a cultura gnóstica, que inclui desde os primeiros verdadeiros cristãos (anteriores a Jesus, pois que o termo "Cristo" corresponde a um estado espiritual "alcançável", usado antes do suposto nascimento Histórico de Jesus) até aos Evangelhos proibidos, com estes a mostrarem a grandeza da Sabedoria de Jesus de uma forma bastante diferente da que conhecemos pela "cultura oficial" (lembremos que os diferentes Evangelhos, canónicos e gnósticos, datam todos de uma data não anterior ao séc. II/III da nossa Era, o que significa que não existem registos das palavras do Mestre nos dois séculos seguintes à data calculada para a sua morte, o que, para muitos, contribui para provar que o Cristianismo corresponde sobretudo a uma religião tornada dominante e influente de diversas obras - por um mecanismo de contágio - entre muitas outras seitas e sem nenhuma ligação obrigatória a um Messias).
É precisamente com base na noção de devoção benigna (e nunca cega ou apartada da racionalidade), no Amor fraterno e na profunda beneficência, que devemos viver a fase natalícia, sem uma preocupação exagerada com a severidade Histórica da data, e mais com a preocupação genuína por sentir o Espírito, com o corpo e a alma, sem sentimentos de culpa, como base da vivência profunda dos afectos e do auto-encontro. Não é por acaso que tantas pessoas sentem tristeza ou saudade no Natal. Não é por acaso que muitos de nós acabamos por condescender, perdoar, esquecer o ressentimento, apaziguar a inquietação interior, precisamente na época natalícia...
Assumindo previamente que a Espiritualidade enquanto "conceito" não iguala a "Religião", e atendo que o contacto com o Esoterismo, no sentido de uma filosofia espiritual profunda e racional, nos torna muitas vezes avessos à aceitação da fé enquanto princípio propulsor de uma vida centrada no Espírito, pode parecer contraditório que venha, de algum modo, defender a imprescindibilidade da fé para a prática devocional e a vivência da iluminação espiritual.
A contradição radica, por assim dizer, na eterna oposição entre fé e razão, sendo que a última é muitas vezes advogada como base necessária e até suficiente para a compreensão integral do processo espiritual, o que, a meu ver, pode resultar numa ilusão, que é a mesma que ancora na presunção de que o pensar do tipo "filosófico" é meramente uma questão de Racionalidade.
Seguindo a Escala de Platão, segundo a qual o acesso à realidade se pode processar por dois níveis - Doxa (opinião) e Epistémi (Razão/Conhecimento) - e atendendo que a Fé ("Pistis") está incluída na Doxa, seria normal considerar, à imagem do que classicamente tem sido feito, que a fé pertence ao domínio do corpo e da mera "confiança" numa suposta verdade mesmo que não comprovada racionalmente como tal, e que a Razão pertence ao domínio do "além do corpo" e requer critérios objectivos de distinção entre diferentes verdades. No sentido esotérico, o Espírito teria mais a ver com esse racional "além do corpo" do que com a fé, considerando esta última como estando mais relacionada com a temática religiosa propriamente dita; assim sendo, também se poderia considerar que as sensações afectas à devoção não relevariam da verdadeira Espiritualidade, mas somente do fenómeno "popular" e exotérico da "Fé".
A perspectiva clássica de oposição Fé vs. Razão, Corpo vs. Espírito, Religião Exotérica vs. Religião Esotérica medra de duas grandes ilusões quase milenares. Uma delas é a consideração de que o Espírito ou o próprio acto do Filosofar pode dispensar o corpo e a sensação, quando, na verdade, todo o acto de Consciência ou Hiper-consciência reitera a existência de um palco somático (senão da própria fé...), se é que não corresponde meramente ao próprio palco neurológico (assumindo-se, assim, a "alma" e o "Espírito" como meras alegorias). A outra ilusão corresponde à errónea pressuposição de que é possível uma vida espiritual sem a inclusão das sensações, emoções, sentimentos, quando, obviamente, a mera compreensão racional da Religião é insuficiente para a prática de uma vida espiritual no ponto de vista, não tanto da renúncia, mas da tolerância e da compaixão.
Daí que é preciso sentir o amor para amar, e tudo isto só é possível se o Eu for amado e tiver sido desde sempre um self estruturado pelo Amor. Sem ter sido amado e sem ser Amor, o Eu não pode amar, não pode tolerar, não pode sequer renunciar ou viver uma vida de dedicação a outrem. Sem a corporeidade, não haveria sequer força trófica para o filosofar, até porque, como digo no agora publicado livro «As Metamorfoses do Espírito» (Apeiron Edições), o acto filosófico-espiritual requer, na verdade, um certo nível de caos interno ou desassossego mental, a angústia de quem busca as estruturas primárias do seu Ser, tal como acontece com os ritos, que são desde sempre um reviver simbólico das origens, da criação, no sentido do "Arché" ou Princípio bíblico.
O ritual é, assim, um pouco como quase tudo o que existe na religião: uma "reactualização nostálgica das origens", para utilizar as palavras de Mircea Eliade. E é indubitável que os ritos são a expressão do simbolismo do retorno à Terra/Natureza (veja-se o exemplo do funeral), às águas primordiais (como no baptismo, em que o mergulho na água implica a transmutação) ou mesmo do regresso ao Paraíso (vejam-se os templos, as torres, os rituais de ascensão) - com o próprio rezar a conceber-se como a "Palavra", que crida e repetida, transforma e constrói a própria Realidade (interna e externa) -, com alguns deles a serem tão antigos quanto as primeiras religiões, que eram aquelas em que se simbolizava/cultuava a união do homem à natureza e aos ciclos ou estações naturais (por exemplo, a reencarnação e a própria noção cíclica de tempo, muito importantes para os orientais, sobrevêm determinantemente da vivência dos ciclos das colheitas ou dos ciclos comportamentais dos animais e até da intimidade lunar feminina).
O próprio Natal era festejado já antes da Era Cristã em associação ao início do ano (do ciclo solar), com a entrada no solstício de Inverno, só mais tarde adaptado pela Igreja Católica no séc. III da nossa Era para a conversão dos povos pagãos sob o domínio do Império Romano. E até as liturgias (assim como o 25 de Dezembro enquanto data na realidade pouco provável do nascimento de Jesus) reiteram o rito, incluindo uma simbologia riquíssima proveniente de diversas culturas e religiões da Pérsia e da Índia.
A fé é assim uma força motriz muito antiga, e que em conjunto com simbolismos e rituais muitas vezes não consciencializados como tal, tem ajudado a manter e a fecundar o tecido religioso das culturas, se bem que muitas vezes por vias que mancham definitivamente o objecto mais belo e prístino da Espiritualidade.
É bem verdade que a devoção perante a imagem do Mestre Jesus e dos seus ensinamentos, aceites com a fé própria de quem condescende a sua vontade à força verdadeiramente benigna do profeta messiânico, não desmerece aplausos, mas o risco dessa fé resvalar para a cegueira "confortável", acrítica, dogmática e destruidora é enorme. Veja-se o desempenho da Igreja Católica em milénios de uma História de perseguições, até mesmo da riqueza da cultura oriental e greco-latina da qual vieram muitos preceitos da religião oficial de Cristo (sem que a Igreja admita sequer tais origens ou influências), e até a cultura gnóstica, que inclui desde os primeiros verdadeiros cristãos (anteriores a Jesus, pois que o termo "Cristo" corresponde a um estado espiritual "alcançável", usado antes do suposto nascimento Histórico de Jesus) até aos Evangelhos proibidos, com estes a mostrarem a grandeza da Sabedoria de Jesus de uma forma bastante diferente da que conhecemos pela "cultura oficial" (lembremos que os diferentes Evangelhos, canónicos e gnósticos, datam todos de uma data não anterior ao séc. II/III da nossa Era, o que significa que não existem registos das palavras do Mestre nos dois séculos seguintes à data calculada para a sua morte, o que, para muitos, contribui para provar que o Cristianismo corresponde sobretudo a uma religião tornada dominante e influente de diversas obras - por um mecanismo de contágio - entre muitas outras seitas e sem nenhuma ligação obrigatória a um Messias).
É precisamente com base na noção de devoção benigna (e nunca cega ou apartada da racionalidade), no Amor fraterno e na profunda beneficência, que devemos viver a fase natalícia, sem uma preocupação exagerada com a severidade Histórica da data, e mais com a preocupação genuína por sentir o Espírito, com o corpo e a alma, sem sentimentos de culpa, como base da vivência profunda dos afectos e do auto-encontro. Não é por acaso que tantas pessoas sentem tristeza ou saudade no Natal. Não é por acaso que muitos de nós acabamos por condescender, perdoar, esquecer o ressentimento, apaziguar a inquietação interior, precisamente na época natalícia...
Luís Coelho
Ensaísta e autor do recém-publicado «As Metamorfoses do Espírito» www.reeducacaopostural.blogspot.com |