Entrevista a Élia Gonçalves,
" O Mistério da Vida"
Élia Gonçalves, Coordenadora Pedagógica da Escola de Desenvolvimento Transpessoal e autora do livro “O Mito de Ophídia”, fala aos leitores da Revista Progredir sobre o mundo feminino, os seus poderes e desafios.
Progredir: Élia Gonçalves, para os leitores que não a conhecem, o que diria que a define como pessoa?
Élia Gonçalves: Não sei se me sei definir. Sou apaixonada pela Vida, pelas pessoas, pelas suas estórias e pelos processos das suas escolhas. Sou alguém que escolheu percorrer um caminho de busca interior, de observação e busca de verdade interna, de vivência de sagrado na vida. E que encontra essa sacralidade no que é simples, no mundano, nas circunstâncias da vida e na vulnerabilidade da humanidade. O perfeito e o ideal não me encantam, e descubro muitas vezes a beleza, o sentido e a magia na partilha, nas gargalhadas, na dança. Nas coisas que são autênticas e reais no dia a dia, nas relações entre as pessoas e nos afetos.
Progredir: Fale-nos um pouco do seu percurso de vida.
Élia Gonçalves: Sou algarvia e praticamente cresci na praia de Faro, onde os meus avós tinham casa. Esta minha curiosidade pelo profundo, pelo que está “mais além” do aparente já vem daí. Nas noites em que me deitava na areia com os meus pais, na praia, a ver as estrelas e o meu pai me falava da possibilidade de outros mundos, de sermos tão pequeninos neste universo e do sentido da vida. Recordo-me desses momentos como as primeiras vezes em que lidei com o sagrado, sem lhe saber dar nome. Essa sensação de que sou ínfima, da qual surge uma profunda reverência pelo Mistério que é a vida.
Talvez por isso, e por me encontrar tantas vezes nas estórias dos outros e nas suas emoções, seguir psicologia foi somente natural. Nunca me vi a fazer outra coisa a não ser, talvez, escrever, que é para mim essencial, terapêutico, alimento para o âmago. Ao longo do meu curso senti também que precisava de aprofundar aquilo que aprendia de uma outra forma, que precisava de encontrar mais alma numa ciência que se ocupa dela. Por isso procurei, estudando e aprendendo variadíssimas coisas, como astrologia, método Louise Hay, reiki, coaching, e tantas outras coisas que foram surgindo. Mas também enriquecendo o meu trabalho com muitos autores que me abriram os horizontes. Conheci muitas pessoas no caminho que me enriqueceram a vida e os recursos com a sua sabedoria, com a beleza do seu trabalho e que me ensinaram muito. Sinto que aprendi com pessoas cheias de qualidade e um equilíbrio extraordinário entre o espírito e a matéria, uma espiritualidade verdadeiramente enraizada. Nesse sentido considero-me uma mulher muito abençoada e muito grata.
O meu trabalho com a psicologia iniciou-se com a intervenção comunitária, com crianças, jovens e adultos e curiosamente foi neste âmbito que facilitei o primeiro circulo de feminino, entre jovens adolescentes. O grupo de raparigas, como lhe chamávamos, deu-me a primeira perspetiva do que é a partilha e o elo entre as mulheres, algo que permanece e não quebra, quando é real.
Em 2005, ao mesmo tempo que me iniciei na prática clínica privada, comecei também a trabalhar com grupos, e este é o espaço onde me expando, no qual me sinto a mover em Amor. É algo que faço com o coração e de forma absolutamente entregue. E, como dou tanto, recebo muito.
Em 2013 atravessei um processo de doença, um cancro de mama, que me levou até às minhas próprias profundezas, ao meu submundo e um processo de rendição e vulnerabilidade. Aprendi na prática o que era dar-me a mão na escuridão, acompanhar a minha criança perdida e assustada e descobrir uma mulher adulta que coabita com essa criança e é capaz de suster-se a si mesma. Aprendi a honrar o Mistério com menos necessidade de controlar o que há. E aceitar que às vezes, isso também não é possível. A vida é cíclica.
O meu trabalho com o feminino, a minha prática clínica e mesmo a minha presença na EDT comportam essa dimensão, nos dias de hoje. De enraizamento, de suster o que há o tempo suficiente para que o renascimento se dê. De contemplar a humanidade com todas as suas dimensões e ser capaz de lhe dar a mão. Não me faz sentido de outra forma
Progredir: Élia Gonçalves, para os leitores que não a conhecem, o que diria que a define como pessoa?
Élia Gonçalves: Não sei se me sei definir. Sou apaixonada pela Vida, pelas pessoas, pelas suas estórias e pelos processos das suas escolhas. Sou alguém que escolheu percorrer um caminho de busca interior, de observação e busca de verdade interna, de vivência de sagrado na vida. E que encontra essa sacralidade no que é simples, no mundano, nas circunstâncias da vida e na vulnerabilidade da humanidade. O perfeito e o ideal não me encantam, e descubro muitas vezes a beleza, o sentido e a magia na partilha, nas gargalhadas, na dança. Nas coisas que são autênticas e reais no dia a dia, nas relações entre as pessoas e nos afetos.
Progredir: Fale-nos um pouco do seu percurso de vida.
Élia Gonçalves: Sou algarvia e praticamente cresci na praia de Faro, onde os meus avós tinham casa. Esta minha curiosidade pelo profundo, pelo que está “mais além” do aparente já vem daí. Nas noites em que me deitava na areia com os meus pais, na praia, a ver as estrelas e o meu pai me falava da possibilidade de outros mundos, de sermos tão pequeninos neste universo e do sentido da vida. Recordo-me desses momentos como as primeiras vezes em que lidei com o sagrado, sem lhe saber dar nome. Essa sensação de que sou ínfima, da qual surge uma profunda reverência pelo Mistério que é a vida.
Talvez por isso, e por me encontrar tantas vezes nas estórias dos outros e nas suas emoções, seguir psicologia foi somente natural. Nunca me vi a fazer outra coisa a não ser, talvez, escrever, que é para mim essencial, terapêutico, alimento para o âmago. Ao longo do meu curso senti também que precisava de aprofundar aquilo que aprendia de uma outra forma, que precisava de encontrar mais alma numa ciência que se ocupa dela. Por isso procurei, estudando e aprendendo variadíssimas coisas, como astrologia, método Louise Hay, reiki, coaching, e tantas outras coisas que foram surgindo. Mas também enriquecendo o meu trabalho com muitos autores que me abriram os horizontes. Conheci muitas pessoas no caminho que me enriqueceram a vida e os recursos com a sua sabedoria, com a beleza do seu trabalho e que me ensinaram muito. Sinto que aprendi com pessoas cheias de qualidade e um equilíbrio extraordinário entre o espírito e a matéria, uma espiritualidade verdadeiramente enraizada. Nesse sentido considero-me uma mulher muito abençoada e muito grata.
O meu trabalho com a psicologia iniciou-se com a intervenção comunitária, com crianças, jovens e adultos e curiosamente foi neste âmbito que facilitei o primeiro circulo de feminino, entre jovens adolescentes. O grupo de raparigas, como lhe chamávamos, deu-me a primeira perspetiva do que é a partilha e o elo entre as mulheres, algo que permanece e não quebra, quando é real.
Em 2005, ao mesmo tempo que me iniciei na prática clínica privada, comecei também a trabalhar com grupos, e este é o espaço onde me expando, no qual me sinto a mover em Amor. É algo que faço com o coração e de forma absolutamente entregue. E, como dou tanto, recebo muito.
Em 2013 atravessei um processo de doença, um cancro de mama, que me levou até às minhas próprias profundezas, ao meu submundo e um processo de rendição e vulnerabilidade. Aprendi na prática o que era dar-me a mão na escuridão, acompanhar a minha criança perdida e assustada e descobrir uma mulher adulta que coabita com essa criança e é capaz de suster-se a si mesma. Aprendi a honrar o Mistério com menos necessidade de controlar o que há. E aceitar que às vezes, isso também não é possível. A vida é cíclica.
O meu trabalho com o feminino, a minha prática clínica e mesmo a minha presença na EDT comportam essa dimensão, nos dias de hoje. De enraizamento, de suster o que há o tempo suficiente para que o renascimento se dê. De contemplar a humanidade com todas as suas dimensões e ser capaz de lhe dar a mão. Não me faz sentido de outra forma
Progredir: Está ligada à Escola de Desenvolvimento Tranpessoal, como nasce este encontro?
Élia Gonçalves: A EDT aparece com um convite da Vanessa Oliveira para fazer o curso de Terapia Transpessoal. Com um percurso já longo na área do Desenvolvimento Pessoal, hesitei por um breve momento a embarcar nesta aventura. Numa feliz sincronicidade, o José Maria Dória, fundador da Escola, veio a Lisboa dar uma palestra e escutá-lo fez-me decidir.
Foi em 2010, o ano em que a Escola iniciou em Portugal o seu trabalho. O curso de terapia transpessoal mudou efetivamente a minha forma de estar no mundo. Tal como a maioria dos alunos que entra em terapia transpessoal, eu trazia um percurso feito e as temáticas não me eram desconhecidas. Porém, a forma como estavam estruturadas, como se encadeavam, como se conectavam com a humanidade, com as circunstâncias, com o comum e com o coração levaram-me a um outro ponto. Ao mesmo tempo, o acompanhamento de outro alguém que nos escuta e acompanha num processo de transformação profunda é uma vivência extraordinária. Para mim foi.
Enquanto tirava o curso escutava a Vanessa, nessa altura minha tutora, e os seus sonhos para a Escola, o seu respeito profundo pelo outro, tudo aquilo que ela acreditava que poderia construir em Portugal. Esse espaço de aprendizagem não só de teorias, mas do acompanhamento a nós mesmos, do enraizamento, do vivenciar e acolher o Mistério da Vida e trazê-lo para o dia a dia. E eu sentia que queria fazer parte dessa estória, que esses sonhos ressoavam de alguma forma com os meus. Por isso, quando o convite para me tornar tutora chegou, eu não hesitei. E tem sido extraordinário.
Neste momento tenho uma função de coordenação pedagógica e o meu trabalho já não abarca somente a sacralidade de um acompanhamento a outra pessoa, com todo o respeito, expansão do coração e conexão que o mesmo trás. Lido com a supervisão, lido com a humanidade e “pedras no caminho”, como diria Fernando Pessoa. Mas afinal o Mistério do que é ser-se humano também é isso. Ser-se quem se é implica viver o todo que somos. Não faria sentido de outra forma. Há que recordar somente essa conexão ao coração, à Alma.
Progredir: Como nasce o interesse pelo Feminino?
Élia Gonçalves: Não sei bem se nasce em algum ponto, ou se nasceu comigo. Tenho uma infância cheia de memórias de mulheres. Casas cheias de tias, avós, vizinhas que se juntavam para fazer bolos, que lanchavam juntas, com a criançada a correr pela casa e a fazer barulho. Com estas mulheres aprendi o que, mais tarde percebi ser uma parte esquecida – até mesmo por elas – da sabedoria feminina. É um mundo extraordinário, o das mulheres. Engloba os cozinhados, as tecelagens e o crochet, as mezinhas e as rezas, ao mesmo tempo que o mudar as fraldas de uma criança, tratar das tarefas rotineiras e rir de coisas que pouco sentido fazem a quem não faz parte desse mundo.
E há a ciclicidade do corpo e da Terra. Talvez seja por isso que as mulheres têm esta capacidade de suster praticamente tudo. Elas sabem no corpo que a vida é cíclica. Elas conhecem o valor da tempestade com a mesma força dos dias de sol. Ainda que se queixem da tempestade. Sabem que as dores de parto geram vidas. Elas intuem instintivamente que “isto também passará”.
Comecei a ler sobre o feminino em adolescente, fechada no meu quarto em noites de luar. Com a psicologia, passei a estudar os mitos e os arquétipos femininos e toda uma dimensão da simbologia feminina se tornou um objeto de estudo e pesquisa.
Olho para trás e vejo que o meu trabalho pessoal com o feminino e os meus círculos de mulheres foram-se transformando com a minha própria maturação.
Nesta fase gosto de mulheres reais, das suas estórias e das estórias que contamos a nós mesmas. Cativa-me a mitologia, os arquétipos que vivemos, muitas vezes sem nos dar conta, e as pistas simbólicas para o caminho. Interessa-me viver a dimensão do feminino sagrado no dia a dia, trabalhar com mulheres que têm trabalhos e filhos e circunstâncias comuns. E que possam trazer o silêncio, a escuta interna, a quietude para dentro destas circunstâncias. Que saibam que a sua humanidade e o mundano são tão sagrados como tudo o resto. Que possam permanecer na sua vida, dando atenção à sua dimensão feminina. Sem se sentirem menos mulheres por não poderem estar na floresta, não poderem ser mães a tempo inteiro, ou tantas outras coisas que acreditamos “ser o caminho”. A dimensão feminina também está dentro e saber estar connosco mesmas e tirar tempo quando o corpo pede, manter um diário ou lembrarmo-nos de acender uma vela quando chegamos a casa, despertando também o fogo interno faz parte desta dimensão mítica que é ser mulher.
Élia Gonçalves: A EDT aparece com um convite da Vanessa Oliveira para fazer o curso de Terapia Transpessoal. Com um percurso já longo na área do Desenvolvimento Pessoal, hesitei por um breve momento a embarcar nesta aventura. Numa feliz sincronicidade, o José Maria Dória, fundador da Escola, veio a Lisboa dar uma palestra e escutá-lo fez-me decidir.
Foi em 2010, o ano em que a Escola iniciou em Portugal o seu trabalho. O curso de terapia transpessoal mudou efetivamente a minha forma de estar no mundo. Tal como a maioria dos alunos que entra em terapia transpessoal, eu trazia um percurso feito e as temáticas não me eram desconhecidas. Porém, a forma como estavam estruturadas, como se encadeavam, como se conectavam com a humanidade, com as circunstâncias, com o comum e com o coração levaram-me a um outro ponto. Ao mesmo tempo, o acompanhamento de outro alguém que nos escuta e acompanha num processo de transformação profunda é uma vivência extraordinária. Para mim foi.
Enquanto tirava o curso escutava a Vanessa, nessa altura minha tutora, e os seus sonhos para a Escola, o seu respeito profundo pelo outro, tudo aquilo que ela acreditava que poderia construir em Portugal. Esse espaço de aprendizagem não só de teorias, mas do acompanhamento a nós mesmos, do enraizamento, do vivenciar e acolher o Mistério da Vida e trazê-lo para o dia a dia. E eu sentia que queria fazer parte dessa estória, que esses sonhos ressoavam de alguma forma com os meus. Por isso, quando o convite para me tornar tutora chegou, eu não hesitei. E tem sido extraordinário.
Neste momento tenho uma função de coordenação pedagógica e o meu trabalho já não abarca somente a sacralidade de um acompanhamento a outra pessoa, com todo o respeito, expansão do coração e conexão que o mesmo trás. Lido com a supervisão, lido com a humanidade e “pedras no caminho”, como diria Fernando Pessoa. Mas afinal o Mistério do que é ser-se humano também é isso. Ser-se quem se é implica viver o todo que somos. Não faria sentido de outra forma. Há que recordar somente essa conexão ao coração, à Alma.
Progredir: Como nasce o interesse pelo Feminino?
Élia Gonçalves: Não sei bem se nasce em algum ponto, ou se nasceu comigo. Tenho uma infância cheia de memórias de mulheres. Casas cheias de tias, avós, vizinhas que se juntavam para fazer bolos, que lanchavam juntas, com a criançada a correr pela casa e a fazer barulho. Com estas mulheres aprendi o que, mais tarde percebi ser uma parte esquecida – até mesmo por elas – da sabedoria feminina. É um mundo extraordinário, o das mulheres. Engloba os cozinhados, as tecelagens e o crochet, as mezinhas e as rezas, ao mesmo tempo que o mudar as fraldas de uma criança, tratar das tarefas rotineiras e rir de coisas que pouco sentido fazem a quem não faz parte desse mundo.
E há a ciclicidade do corpo e da Terra. Talvez seja por isso que as mulheres têm esta capacidade de suster praticamente tudo. Elas sabem no corpo que a vida é cíclica. Elas conhecem o valor da tempestade com a mesma força dos dias de sol. Ainda que se queixem da tempestade. Sabem que as dores de parto geram vidas. Elas intuem instintivamente que “isto também passará”.
Comecei a ler sobre o feminino em adolescente, fechada no meu quarto em noites de luar. Com a psicologia, passei a estudar os mitos e os arquétipos femininos e toda uma dimensão da simbologia feminina se tornou um objeto de estudo e pesquisa.
Olho para trás e vejo que o meu trabalho pessoal com o feminino e os meus círculos de mulheres foram-se transformando com a minha própria maturação.
Nesta fase gosto de mulheres reais, das suas estórias e das estórias que contamos a nós mesmas. Cativa-me a mitologia, os arquétipos que vivemos, muitas vezes sem nos dar conta, e as pistas simbólicas para o caminho. Interessa-me viver a dimensão do feminino sagrado no dia a dia, trabalhar com mulheres que têm trabalhos e filhos e circunstâncias comuns. E que possam trazer o silêncio, a escuta interna, a quietude para dentro destas circunstâncias. Que saibam que a sua humanidade e o mundano são tão sagrados como tudo o resto. Que possam permanecer na sua vida, dando atenção à sua dimensão feminina. Sem se sentirem menos mulheres por não poderem estar na floresta, não poderem ser mães a tempo inteiro, ou tantas outras coisas que acreditamos “ser o caminho”. A dimensão feminina também está dentro e saber estar connosco mesmas e tirar tempo quando o corpo pede, manter um diário ou lembrarmo-nos de acender uma vela quando chegamos a casa, despertando também o fogo interno faz parte desta dimensão mítica que é ser mulher.
Progredir: Do que nos fala o seu livro "O Mito de Ophídia"?
Élia Gonçalves: O mito de Ophídia fala de uma “mudança de pele”. Fala do espaço duríssimo que se vive quando a velha pele desaparece e a nova ainda não nasceu. Esse não espaço e não tempo que arquetipicamente intitulamos submundo. Todas as mulheres mudam de pele, muitas e muitas vezes.
O livro é o resultado da minha viagem ao submundo, resultante da doença. É uma viagem de morte e renascimento, mas também de rendição, de simplicidade e vulnerabilidade.
Com ele, tentei chegar às mulheres que passam por crises de vida, por momentos de aridez e por perda de sentido. Através de uma dimensão mais mítica – ligada a mitos de morte e renascimento – e de tarefas arquetípicas com o pano de fundo da minha própria estória.
Nessa dimensão “entre peles”, muitas das coisas que acreditamos e que nos dão uma sensação de segurança deixam de existir. Os velhos caminhos já não fazem sentido. Aquilo que antes nos dava alento perde o seu valor. O que nos resta? Aparentemente nada, até que esse ajoelhar à terra nos leva ao encontro da própria Alma. Ophídia é arquetipicamente essa mulher, que não tem outro remédio que não se recolher na gruta para esperar “que passe”, e que acaba por se encontrar com uma dimensão do feminino que, não sendo “politicamente bela”, é capaz de acolher tudo. Para mim, isso é a Alma.
Progredir: Acredita que todas as mulheres têm a oportunidade de honrar a sacralidade da vida e o seu lado feminino?
Élia Gonçalves: Sem dúvida que sim. As mulheres têm esta extraordinária capacidade de carregar vida dentro delas. Haverá maior dimensão de sagrado que essa? Elas vivem a espiritualidade no corpo e, por isso, o sagrado está-lhes nos passos. Não precisam de fazer muito para se lembrarem de quem são. O sangue cíclico da menstruação recorda-lhes essa capacidade de carregar vida.
Quando as mulheres se permitem viver em ciclicidade, em lugar da linearidade, a vida muda. Elas têm espaço para agir, trabalhar, trazer o seu lado yang para o mundo. Mas também se permitem espaços de recolhimento, de descanso, de mantas no sofá, caminhadas pela natureza e silêncio. Para contemplar a beleza de um por do sol ou de uma obra de arte, uma dimensão profundamente importante para alma feminina. Elas podem dar-se espaço para escrever, para dançar, para se reunirem com outras mulheres e partilhar o que se passa dentro delas. Mas também rir, contar estórias ou fazer malha.
Acontecem coisas incríveis às mulheres que guardam tempo para bordar, cozer ou tecer. Muitas expressam a vivência de um tempo sem tempo, de um silêncio e de uma dimensão onde tudo o que existe é o momento presente. Isto, de alguma forma, sana-as. E não é diferente daquilo que tanto procuramos nos ensinamentos de atenção plena dos dias de hoje.
Eu sinto a dimensão do sagrado quando faço pequenas coisas desde esse ponto de eternidade, quando sei que tantas mulheres antes de mim o fizeram e é por isso que aqui estou. Quando me recordo desse fogo interno que me habita. Quando estou em presença para mim mesma. Para mim, isso é viver o mito pessoal.
Progredir: O tema deste mês da Revista Progredir é “Julgar”. Na sua opinião as mulheres da nossa sociedade ainda carregam o peso do Julgamento
Élia Gonçalves: Sem dúvida que sim. Em muitas questões de direitos de deveres, algumas coisas mudaram e continuam a mudar. As coisas não estão ainda, minimamente equilibradas. Mas acredito que para lá caminhamos.
Porém, há um julgamento interno que permanece, muitas vezes nas próprias mulheres. As mulheres sentem muita culpa, julgam-se a elas mesmas. Do que fazem, do que não fazem, do que deveriam estar a fazer. Uma mulher quer chegar a todo o lado, se trabalha 10 horas por dia, ela sente-se culpada por não estar presente como mãe, por não ter feito as compras, por não ter a casa em ordem, por não estar com os amigos, por não ler aquele livro, enfim. Temos imaginação para muito mais.
As mulheres tentam ser perfeitas. E isso é duríssimo, pois é um caminho de falhanço constante. Faz parte deste resgate do feminino, a dimensão de nos permitirmos ser humanas. De saber dizer não. De chegar somente onde podemos ou queremos. E sentir que está tudo bem.
Progredir: Uma mensagem para os nossos leitores?
Élia Gonçalves: Que possam honrar-se nos seus passos. Que possam recordar-se do sagrado da alma, na partilha de afetos e do que importa. Que possam acompanhar nos momentos duros e dar a mão a essa dimensão de si que fica paralisada de medo. Que possam sussurrar-lhe desde esse ponto de eternidade “a tempestade também passa”.
Èlia Gonçalves
www.escolatranspessoal.com
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