Por Horácio Lopes
in REVISTA PROGREDIR | OUTUBRO 2012
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A pessoa é, no dizer de Kant, esse sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação que, no sentido moral, é o juízo pelo qual se olha para alguém como o autor de uma ação. Por isso, quem diz pessoa diz, simultaneamente, sujeito e liberdade.
O indivíduo biológico, o sujeito psíquico e a personalidade biográfica são como que três modalidades enredadas da singularização humana; por isso é necessário lembrar permanentemente que ser humanamente pessoa não é um estado, mas um ato.
A passagem de ser humano anónimo a pessoa realizada enquanto tal supõe um movimento, um devir, um progresso, uma mudança, uma aquisição, que perpassa diferentes dimensões.
De acordo com o esquema seguinte é possível analisarmos essas mesmas dimensões.
Mundo Exterior
a) Uma dimensão corporal, que nos põe em contato com o mundo exterior e com os outros, autêntico interface do Ser na sua totalidade; faz parte do que somos, uma vez que não é um objeto que possuímos; dotada dos sentidos, que lhe permitem procurar o bem que lhe é próprio, e que é o bem-estar (a sombra quando faz calor, um assento quando se está cansado...); através dela recebemos e damos todas as informações ao mundo “exterior”; este corpo, recebemo-lo, e isso marca uma recetividade fundamental: o corpo é assim como que o enraizamento natural, cósmico, material da nossa pessoa e é também a marca da finitude, porque todos os meus projetos e empresas são afetadas pelo “aqui e agora” da presença do corpo que termina com a morte.
b) Uma dimensão afetiva, dotada das emoções e sentimentos, que funcionam para o nosso elemento afetivo como os sentidos são para o nosso corpo: instrumentos que lhe permitem buscar o bem que lhe é próprio, e que são as sensações agradáveis; por serem falíveis, também os sentimentos e as emoções têm um valor muito relativo, que deve ser tido em conta mas não absolutizado, sendo como que indicadores do nosso estado emocional, e não tendo, sobretudo, qualquer valor moral; um sentimento é como que um sinal de alerta, uma chamada de atenção, um estímulo, perante o qual a pessoa una permanece livre; e talvez seja aqui que o homem experimenta o carácter único e irredutível do seu ser pessoa: a afetividade enraíza-se no corpo desejante, que implica o corpo biológico, mas supera-o numa expressão específica; por isso o devir da pessoa parece assim ligado com a maturação afetiva; outrora mais remetida para segundo plano (talvez por causa da sua instabilidade e do seu enraizamento no desejo que surge do corpo) é, hoje, muitas vezes sobrevalorizada, como se a pessoa fosse exclusivamente um ser afetivo.
C) Uma dimensão Mental, intelectual, do raciocínio, dotada da inteligência e que tem como bem próprio o conhecimento da verdade; dimensão da linguagem, em que o sujeito pessoal é um corpo que fala, fenómeno pelo qual o homem adquire a capacidade de significar, de erigir-se por cima das coisas imediatamente presentes para delinear uma rede de sentidos e significações.
d) Uma dimensão do eu profundo, que concerne a minha transcendência e o agir ético; é o cerne do ser, que tem como instrumento a liberdade (o poder dizer sim e não), com o qual persegue o bem que lhe é próprio: o Amor; lugar das decisões, que guarda a memória existencial e a vontade, e dirige o todo ao integrar os dados de todas as dimensões mais externas; se a minha pessoa se encarna nos seus atos, existe sempre, por outro lado, uma transcendência do eu relativamente ao seu agir, que se verifica na possibilidade que tenho de tomar distância em relação ao meu passado.
Não se trata de quatro dimensões separadas ou justapostas, pois é o sentido da pessoa que atravessa cada uma destas dimensões.
A relação com a outra pessoa é aqui essencial. No caminho da minha realização como pessoa encontra-se o outro: o intermediário ou a mediação pela qual cada um de nós se realiza, e o absoluto papel da relação ao outro está inscrita desde logo no corpo que recebemos dos nossos pais. Quase se podia dizer que o homem é orientado de forma constitutiva para o outro em virtude da sua natureza afetiva. E também no seio do agir ético, o outro aparece como a figura do homem que me torna responsável e pelo qual sou responsável.
Cada dimensão mais interna tem uma função de ser reguladora das dimensões mais externas sendo, por isso, dado à dimensão mais profunda a função de conduzir o indivíduo no seu caminho de se tornar pessoa, permitindo assim a integração completa de todas as dimensões e a sua unificação em torno das suas grandes decisões e opções.
Como o sistema pode, porém, ser perturbado com alguma facilidade (uma doença, o contexto cultural, etc.) é, assim, absolutamente necessário apelar de forma constante a uma verdadeira restruturação do Ser, de modo a que o equilíbrio que diariamente é perturbado seja continuamente refeito. E só neste processo o indivíduo pode crescer enquanto pessoa, pois a imutabilidade e a desregulação são os seus grandes inimigos.
Tornar-se pessoa é um processo contínuo e irrepetível e quaisquer que sejam as condicionantes que se estejam a viver, de forma voluntária ou involuntária, a última palavra pertence sempre à liberdade do Homem.
O crescimento pessoal é quase interminável, pois tudo o que faz parte do passado, do presente e do futuro da história de vida pessoal pode, sem exceção, ser integrado num processo contínuo de compreensão, apropriação organização e escolha.
A pessoa humana distingue-se por esta inefável capacidade de mobilizar o melhor possível de si mesmo para qualquer circunstância que vive ou cria ou encontra. Por esta razão é tão importante aprender e decidir evitar os ambientes tóxicos e optar por ambientes nutridores, de relações qualificadoras e apreciadoras do que somos.
Psicoterapeuta, Formador
www.tornarsepessoa.com
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REVISTA PROGREDIR | OUTUBRO 2012