in REVISTA PROGREDIR |FEVEREIRO 2021
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Vivo e trabalho entre duas aldeias do interior alentejano. O confinamento de abril/maio de 2020 trouxe-me mais energia física, mais capacidade de produção, de reflexão, de aprendizagem, mais contentamento e alegria. Porquê? Porque me deu a possibilidade de servir uma comunidade abundante em séniores (muitos analfabetos), de poder-me colocar ao lado dos que mais sofrem com a solidão e mais medos têm. Para além do mais, todos os dias crescia mais um bocadinho a ouvir histórias, rezas, desabafos e a aprender novas receitas com raízes antigas.
O abalo sentido com todos os cancelamentos da Casa da Cumeada não teve sequer tempo de se manifestar a partir do momento em que enviei o pensamento para os que de mim mais precisavam!
Vou usar nomes fictícios na pequena história a partilhar consigo.
A ordem para ficar em casa chegou num tempo de visitas diárias à Dona Joaquina com 80 anos, sem saber ler nem escrever, esta senhora estava totalmente recetiva a tomar remédios caseiros macrobióticos para melhorar a condição física. O alívio do inchaço generalizado e a regularização dos movimentos peristálticos eram fontes de uma boa disposição que se recuperava aos poucos. Eu ia deixando algumas ideias de como cozinhar com menos gordura, menos sal, menos carne, mais sabores naturais e alimentos da horta e...tentava convencer o Sr Manuel a não trazer caixas de bolos da padaria em frente! mais difícil!
Os filhos deixaram de vir de longe para as visitas de fim-de-semana. Durante mais de um mês, com chave da porta na mão, fui a única pessoa a entrar por aquele corredor escuro adentro. Ao fundo, a cozinha. A cozinha, essa divisão centro da casa como antes o, era e como eu acharia que deveria sempre ser! Aí, a lareira de chão ainda se acendia nos dias mais frios. O Sr Manuel sentado na sua poltrona depois de tratar dos ‘canitos’ e da horta esperava-me, a mim e ao almoço. Na brincadeira, levantava-o e ensaiávamos um pé de dança! A D. Joaquina apressava-se a mostrar o que havia na panela ao fogão. Ao lume quase tudo começava com cebola, alho, coentro e (agora) um fio de azeite com água...
- ‘Venha cá veri...hoje vai gostari do almocinho...ai vai vai...’
- ‘o que é?’
- ‘sopa de bacalhau e espinafres com arroz integral haha’
- ‘haha!’
Era neste tom leve que nos preparávamos para mais uma sessão de estórias com muito saber e sabor. Os dias passavam e as circunstâncias externas tornavam-se mais dominantes nas nossas conversas!
- ‘então, como estão hoje?’
- ‘ai santa, já nem a Praça da Alegria é de alegria. Só falam desta doença’
- ‘Dona Joaquina, não se presta atenção! Vamos ouvir radio!tocam músicas bonitas e animam mais!
- ‘poi, mas agora é hora das notícias...olhe que ‘os governos’ (com referência a PM e PR)vã a falari sobre o crescimento deste mali’
O medo foi crescendo nesta casa. A cada dia ia crescendo o desafio de manter os espíritos em alta.
Na horta do Sr. Manuel havia couves, salsa, coentros e favas em abundância.
- ‘Atã agora o que faço com tanta comida? Os meus filhos é que costumavam levari...’
- ‘Sr Manuel, vamos fazer sacos e eu vou distribuí-los por quem precisa. O que é que acha?’
- ‘bom pensamento! Vam’lá atã’
Na mesa limpa já a D. Joaquina cortava e alinhavava fazenda para um par de calças. Em troca de rezas e benzeduras, havia quem na aldeia lhe dava tecidos. A máquina de costura, uma mesa redonda e um sofá longo onde às vezes descansava as pernas compunham a cozinha. Ah! E no canto, ao lado de um dos dois frigoríficos, a televisão. Transformou-se em ritual e sagrada a hora do almoço.
Com este casal bebi a sabedoria dos simples. Dos que sabem porque viveram e sentiram os ciclos — por estas bandas — extremos da Natureza, a dureza dos dias no campo ou atrás dum balcão para ter o que comer. Os “baús de enxoval” da D. Joaquina enchem-se de toalhas e lençóis bordados, de “talêgos”, panos de cozinha pintados e de pegas feitas em crochet. São de fada estas mãos, afinal! Todos os dias aprendi, todos os dias tornei um pouco menos ansiosos e solitários os dias deste casal.
Acreditar no poder de um gesto solidário é contribuir para o bem-estar nosso e dos outros. É este um pensamento gerador de reações químicas que mantém viva a vida em cada célula do corpo e dá-lhe capacidade de autorregeneração.
Também assim se cria Saúde!
CONSULTORA/COACH ALIMENTAR E DE ESTILO DE VIDA SÓCIA GERENTE DA “CASA DA CUMEADA” – TURISMO RURAL VEGAN À LUZ DA MACROBIÓTICA
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