Por Luís Coelho
in REVISTA PROGREDIR | ABRIL 2015
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Os estudiosos sérios da "Espiritualidade" - quiçá, os "iniciados" - pretendem reconhecer nesta o território de uma Racionalidade (diferenciável da visão "moderna" e "científica" de "Razão"), como e especialmente do que a transpõe, que se coloca bem para além do terreno (devocional) da crença ou fé. É habitual reproduzir a classificação que Platão apresenta em «A República», segundo a qual há duas vias principais de "Conhecimento": a via da "Opinião" ("doxasta") e a via da Razão ("noeta"), sendo que a segunda via divide-se em "dianoia" (que corresponde ao que modernamente a "ciência" entende por "Razão") e "noesis", um tipo superior e intuitivo de Racionalidade. Assim, o "Conhecimento" é a via que a consciência utiliza para chegar ao seu objecto, como ao seu material, os "saberes", e, se o "Conhecimento" é "racional", ela toma o aspeto de "Ciência". Enquanto perdura a viagem entre o ser e o objeto, entre o Eu e a Verdade, as vias vão sendo utilizadas. Mas só quando essa viagem se aproxima de um (suposto) fim é que nos acercamos do que pode ser incluído no plano inquebrantável da Espiritualidade, como da Sabedoria.
No dia-a-dia, vamos utilizando as diversas vias do Conhecimento. E, em grande medida, a parte esmagadora do saber escolar é do tipo "dianóico", um conhecimento racional que implica a categorização, a classificação, a conceitualização, e, como tal, a criação de uma certa distância (moderadora) entre Sujeito e Objeto. A própria Filosofia está francamente repleta deste tipo de "saber" dianóico. Mas a medida da Razão é também a do afastamento de uma certa forma de Luz. Quando, na realidade, o "Espírito" é pressentido pela Luz, reclamado pela Verdade. Só no tipo de Racionalidade "noética" é possível figurar a aproximação a uma forma prévia de Luz, à presciência da Verdade plena, onde o "Eu" e o outro se tornam UM só.
Ora, o modo Superior de Razão não é, bem dizendo, receita de qualquer um e de todos os dias. Ela transcende a conceptualização, desafia as matemáticas, quer transpor a própria linguagem, bem como os mapas que norteiam o Ego. Ela quer chegar à Verdade em "si mesma", ao plano sem planos, à dimensão irreferencial. Não é, portanto, nutriente ávido de uma vida sem fôlego, do neg-ócio da modernidade, da rotina de uma existência impensada. Não é a recalcitrância da acumulação inacabável de peças, explicações, conceitos. Ela quer ir além das peças e das "línguas". E é precisamente no seu plano mais elevado que podemos avistar "Sophia", para muitos a "Gnose", uma forma de "conhecimento não mediado", porque só alcançável pela via própria, da inevitável e irreprimível solidão vivencial.
Assim, se o saber e a cultura concernem à gaveta colecionadora da cognição, já a Sabedoria enquanto "Sophia" quer ser "para além" da cognição, o planalto de uma lucidez alcançada pela via do conhecimento íntimo e esotérico (ou seja, "de fora para dentro"), a montanha desveladora de uma Verdade prestes a "tornar-se".
A Sabedoria implica primeiro que as partes se transponham num Todo, e que os "Eurekas" da vida se prenunciem num outro Todo. Até ali, a via compreensiva, contemplativa, da Existência permitiu unificar uma série de elementos que pareciam (e pereciam) desconexos; e, a partir de determinada altura, já nem são as partes que se tornam Todo, já é o Todo que comanda as partes, já é a União, o conhecimento prévio de tudo quanto existe, que preludia todas as disposições. Mas este processo, mesmo que inicialmente "facilitado" por mestres ou livros, terá de se tornar necessariamente íntimo e autónomo; só pelo trajecto do abandono no coração da Vida é possível descobrir os terrenos mor inauditos e inexplorados de muito do que existe e não é apercebido pelas maiorias; só pela via do deserto cru, do bosque cheio de sombras, é possível descortinar a dimensão muitas vezes inadmitida da presciência; só mediante o mais firme mergulho no próprio ser, no núcleo do núcleo do ser, é possível fazer ex-implodir o momento intemporal em que o ser e a coisa se tornam um só.
A Sabedoria conduz à Verdade, ao Uno, e para isso foi preciso transpor a própria Razão, pela reunificação do ser com o Sentimento, que sugere ser infra-racional. A Sabedoria é o encontro do sentimento com a Alma, o compromisso da emoção própria com a emoção do mundo, a submissão da vontade indómita à vontade de um "Ser" maior. Ela seduz-nos a renunciar ao mundo, ao efémero, ao perecível, ao carnal, em nome de um Edifício comum, de uma deidade que é, ainda assim, parte de nós. Ela quer que estejamos aquém e além da morte, prestes a aferir o Eterno, que, apesar de tudo, é o perecível de um Eterno maior.
E, não obstante, o Indivisível, a Vida plena, que a Sabedoria promete, não é coisa exaurível, porque nova temporalidade se aproxima com o peso de renovada carnalidade, porque a "matéria" é apenas um "Espírito por desvelar", e o eterno retorno promete nova involução, caminho de perpetuidade verdadeiramente inesgotável.
LUÍS COELHO TERAPEUTA E ESCRITOR www.reeducacaopostural.blogspot.com [email protected] in REVISTA PROGREDIR | ABRIL 2015 (clique no link acima para ler o artigo na Revista) |