Quando nos refugiamos de alguma forma, forçado ou não, em circunstâncias favoráveis conseguimos ganhar perspetiva. Prioridades. Onde estávamos, de onde viemos e o que é comum. Este período, fez-me fazer uma viagem, cartografar e contemplar momentos semelhantes. Nunca nós vivemos algo assim, tão virtual, invisível e global. Por Carolina Almeida Cruz
in REVISTA PROGREDIR | SETEMBRO 2020
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Duas torres caíram.
A televisão e a internet permitiram que mesmo em locais muitíssimo remotos tivéssemos acesso ao impossível. O aço não foi suficientemente forte. O coração de uma cidade que nunca dorme, efetivamente não iria dormir tão cedo.
O físico tem este efeito.
Torna-se real.
Quando algo que tomamos como inabalável, começa a ruir, entramos em pânico.
Lemos vezes sem conta, que somos cíclicos. Que a história e nós — os humanos, somos feitos de cadências.
Assumimos que estaríamos preparados. Também nós humanos temos essa necessidade, de ter tudo sobre controlo.
Repetimos agora. Estamos a repetir com o invisível. É pior. Não podemos culpar ninguém, o ónus de controle externo é um dos nossos mecanismos de defesa, mas neste momento não funciona.
Estamos a ruir, dizem.
Beirute, este tio “Covid” que nos atormenta e nos coloca a palavra medo nos nossos centros de mesa, a prisão sem grades, aquela que não nos permite os abraços e afetos.
E como é que o humano, na sua essência, se comporta? O amor ganha? Ou o medo?
Um médico, no nosso Beirute, porque o mundo é nosso, se sentirmos que aquelas pessoas são fraternas. É a única forma de sentir, não será?
Esse mesmo médico disse-nos que sim. Refletia como é que era possível acolher, tratar e cuidar se não conseguíssemos tocar. Se ele continuasse com medo? Não poderia. E todos os que lhe foram encaminhados, ele tirou a máscara, as luvas e humanizou.
Quando estamos em tempos de “cólera”, quando o óbvio deixa de ser óbvio, despertamos o nosso melhor. O que as máquinas não substituem. A capacidade que o humano tem de cuidar, e de se mover por um mesmo sentimento inabalável, o amor. O criar e retomar os afetos.
A nossa saúde passa a ser secundária, não porque não tenhamos medo que ela nos falte, porque a ideia de que falte ao “outro”, ao tal irmão, é demasiado doloroso.
E como é que nos mantemos sãos?
Como é que nestes momentos conseguimos falar de paixão e de amor?
Nos corredores da minha faculdade de psicologia, um autor, comparava a paixão à cocaína e o amor à heroína. Como se independentemente do sentimento que estivéssemos a abordar, se tratasse sempre de uma adição. Esta reflexão não foi feita sobre nada material, meramente o intangível. Aquilo que aos nossos olhos não é visível, mas que nos desmorona como se de duas torres se tratasse. Então como decidimos continuar? Porque talvez, ao lado do amor edificado, estejam as fundações da esperança. Conseguimos ter esperança no inferno. Somos aditos a essa esperança, à criação do imaginário, de arco-íris no inferno.
Uma das minhas professoras, Joanna Macy, uma mulher que esteve muitos anos nos Peace Corps dizia que nos momentos mais tenebrosos, onde viu o ser humano a ser humilhado por uma doença, alguém ou por circunstâncias, que surgiam sempre anónimos que tornavam a palavra humano um superlativo. Ou melhor, poucochinho. Humano era chamar-lhes pouco.
Não fazia jus.
Se o ser humano cuida, cuida porque acredita que vai conseguir ser útil e salvar.
Por isso mesmo quando os edifícios, o inabalável, o invisível nos abala, não nos consegue ruir. Porque somos muito mais do que o físico.
Somos as memórias que imprimimos nos outros. Os outros, os nossos, nós, portanto.
CAROLINA ALMEIDA CRUZ APAIXONADA PELA RAÇA HUMANA, LICENCIADA EM PSICOLOGIA, VIAJOU O MUNDO, CO-FUNDOU E GERIU A SAPANA ATÉ DEZEMBRO DE 2018, TRABALHOU NUMA DAS AGÊNCIAS DA ONU, A FUNDAR A SUA FUTURA B CORP, LECIONA/PARTILHA CONHECIMENTO NA CATÓLICA www.sapana.org www.linkedin.com/in/carolinamalmeidacruz [email protected] |