Por Rute Cabrita
in REVISTA PROGREDIR | MARÇO 2018
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
Falar de impermanência é falar de vida. E de não vida. É falar de tudo o que existe, existiu ou existirá. Sempre assim foi e sempre assim o será, pelo fluxo contínuo da transformação. Falar de impermanência é colocar a mente ao serviço da tentativa de descrever essa verdade intuitiva e profunda que se experimenta em tudo e a todo o momento. A incrível capacidade de raciocínio possibilita, de facto, o reconhecimento da impermanência através das memórias e das projeções, que elaboram para além do momento presente. Contudo, esse conhecimento inato, que a todo o momento é vivenciado no corpo, está para além da compreensão racional. E é precisamente por essa limitação da mente que existe o pensamento dual: bom e mau, bonito e feio, dor e prazer. Os conceitos opostos servem, no fundo, para pensar e comunicar sobre permanente impermanência.
A impermanência é o resultado natural da força motriz da vida, do mundo, do universo; é através dela que há a evolução e o infinito, que se concebe o possível e o impossível. E ainda que ela seja incontrolável e incontornável, reconhecê-la provoca grande resistência e desconforto. Na verdade, há tanto a acontecer ao mesmo tempo, dentro e fora de nós, que o intelecto não consegue acompanhar, compreender ou controlar. Os pensamentos, as emoções, as sensações, os desejos, o humor: só isso já é tanto.
Entre a imensidão de todos os estímulos internos e externos, a mente escolhe concentrar-se em apenas alguns. Então, ao focar a atenção num objeto, num pormenor ou numa fração de um movimento, torna-o fixo e exclui todo o dinamismo em seu redor, simulando sensações de estabilidade e solidez. Essa atenção seletiva vai congelando e armazenando frames da realidade, que vão construindo o sentido de identidade, a personalidade, as crenças e os padrões. Assim se vai estabelecendo uma rede funcional que orienta uma atuação padronizada, com impressão de domínio, de segurança e previsibilidade. Porém, essa ilusão de permanência é construída precisamente sobre onde ela não existe: os pensamentos vão e vêm, as ideias transformam-se, o conhecimento renova-se. Acaba por ser um esforço inglório tentar manter coeso todo o cenário físico, psicológico e emocional. Negar as mudanças - além de não impedir que aconteçam - é castrar a plenitude de possibilidades de experiências. A luta racional contra o que há no aqui e agora (e que é impermanente) é a fonte do sofrimento.
O desejo de permanência e de estabilidade acaba por ser a estratégia mental de contornar a consciência da morte, essa, que apenas o ser humano tem; numa realidade ilusória de permanência há a sensação de imortalidade. Os animais, as plantas, o Universo, experimentam a eternidade por existirem a cada momento, sem a habilidade de projeção nem de antecipação. A mente humana luta pela permanência porque sabe que não é eterna. Mas, a cada e a todo o instante, há algo que permanece; há um testemunho da própria impermanência, que a observa sem interferir, que se dá conta das transformações e das estratégias da mente para as controlar.
A permanência permanente na impermanência é a Consciência; essa presença que nunca se transforma nem se extingue. Uma pedra é consciência pura a cada instante, um rio flui no seu caudal de consciência que não teme os caminhos que virão, o Homem é consciência pura para além da mente e do corpo. É essa testemunha que está por detrás das imagens do corpo refletidas no espelho ao longo da vida e que está também para além da mente que processa e arquiva essas imagens. Esse “Eu Sou” que contempla é o mesmo, sempre; um Ser eterno pela permanência na impermanência; um observador das construções e desconstruções da persona que ambiciona segurança. E é esse Eu - eterno, permanente, inteiro, livre e não dual -, que o eu construído pela mente quer mimetizar.
Quando a impermanência causa perturbação e conflito, com excitação ou medo, é apenas um sinal de que atingiu o modelo estático que foi edificado; é uma oportunidade de atualização, de renovação e de liberdade. No silêncio, em atenção plena, na presença e na intimidade com o Eu, há permanência.
TERAPEUTA TRANSPESSOAL
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in REVISTA PROGREDIR | MARÇO 2018
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