in REVISTA PROGREDIR |OUTUBRO 2021
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Maíra renunciara a todos os luxos da vida para iniciar uma nova etapa da existência. Ninguém compreendera aquela escolha de despreendimento, que muitos, incrédulos, apelidavam de loucura. Os sulcos profundos no rosto mostravam a passagem dolorosa dos anos. O choro aflitivo que antecedeu a aceitação de uma realidade que não julgara sua, dera lugar à serenidade que apenas a sabedoria do tempo encontra. E a certeza de querer estar ali depois de abdicar do profundo amor que sentira por Augusto. Passados quase cinco décadas, o reencontro entre os dois era (in)esperado.
Augusto organizara aquele encontro de 3 dias para alguns dos seus amigos. Não lhes explicou quem os esperaria. Seria um afastamento da vida apressada e sem tempo que todos viviam na falsa ilusão da felicidade para um recolhimento na procura do sentido da paz interior. Nada preenchia aquele vazio insuportável que arrastava consigo há muito tempo, fingindo viver uma vida rodeada de todos os luxos.
Como parte do retiro, Maíra entregou a cada um deles uma pequena caixa contendo 3 pequenas pedras raras que só existiam naquele lugar. O desafio era um: duplicar o número de pedras durante aqueles dias. Augusto riu. Parecia-lhe demasiado fácil. O dia começaria cedo, às 4h30 da manhã, com as primeiras práticas meditativas. Seguir-se-iam as tarefas diárias dentro de casa e no exterior. E a colheita dos legumes e das frutas para a preparação das refeições. Antes que escurecesse, Maíra mostrou-lhes o chão onde iriam dormir e todos se recolheram.
Sozinho, Augusto não resistiu e espreitou a caixa que continha as pedras. Os seus olhos arregalaram-se ao ver que a sua caixa continha 6 pedras. Com a testa franzida, os seus lábios curvaram-se num sorriso torto e o corpo relaxou perante uma sensação que já lhe era familiar. Não precisava de fazer mais nada. Mais uma vez, como tantas vezes na sua vida, sentia-se bafejado pela sorte. A oportunidade para ganhar vantagem sobre os outros, mesmo que isso fosse uma ilusão. Como era característica sua, não contou a ninguém o que lhe sucedera e nos 3 dias seguintes, depois de concluídas todas as tarefas, percorreu lentamente aquele ecossistema à procura do melhor lugar onde descansar, sem se preocupar com a derradeira tarefa que Maíra lhes incutira.
O silêncio absoluto fê-lo adormecer e foram contínuas as imagens de todas as suas vivências passadas. Uma vida construída em falsos alicerces, de ambição desmedida e sem respeito pelos outros. Apenas centrado em si e nos seus interesses. Mas isso já não chegava, sentia um vazio que crescia a cada instante. Sentado debaixo de um carvalho com 300 anos, Augusto limpava o rosto do suor misturado com a vegetação daquele solo molhado. Não precisava mais disfarçar aquele sabor a fel com que viveu grande parte da sua vida. A sensação de náusea perturbou-lhe os sentidos ao sentir novamente o cheiro do corpo de Maíra, como aconteceu em todos os seus encontros de um passado longínquo. Chorou compulsivamente, contorcendo-se numa angústia asfixiante, percebendo finalmente tudo o que ela procurou transmitir-lhe no tempo em que estiveram juntos. Vivera como um impostor e agora tinha a oportunidade de recomeçar, de libertar-se da clausura das aparências.
Foram 3 dias de uma profunda transformação pessoal, feita no seu tempo.
O dia da despedida chegou e os quatro reuniram-se na entrada daquele lugar. Os olhos de Augusto reconheceram aquelas duas gotículas de sangue, que Maíra eternizara e recordou, com as lágrimas a cair pela sua face, o pacto que os dois fizeram naquela tarde de verão à beira rio de que a vida ainda os iria juntar para sempre.
Maíra chegou-se à frente e pediu que mostrassem as pedras que traziam consigo. Orgulhosos, um a um, todos os amigos de Augusto mostraram as 6 pedras que tinham encontrado. Ele era o último. Augusto detestava perder. Os erros do passado não tinham servido de nada. Sempre procurara os atalhos mais fáceis para atingir todos os seus objetivos, o que lhe custara a felicidade. Quando estava prestes a mostrar as 6 pedras que tinha na caixa e mais aquela que tinha encontrado, provando uma vez mais que conseguia mais do que os outros, sentiu um arrepio a percorrer todo o seu corpo e arrependeu-se. Petrificado, num esforço sobre-humano, conseguiu dolorosamente abrir a mão direita e mostrou apenas 1 pedra, a única que tinha conseguido encontrar. Caiu por terra e chorou de alegria, pedindo perdão a Maíra por ter demorado tanto tempo a compreender o que ela tentara ensinar-lhe tantas e tantas vezes no passado. Experimentava agora o que significava ser uma pessoa íntegra. Os amigos ficaram estupefactos com a sua inesperada atitude e Maíra sorriu, olhando-o de forma ternurenta. Valera a pena.”
Já alguma vez se deparou com uma situação semelhante à do Augusto?
O nosso comportamento é o mesmo perante uma multidão ou quando estamos sozinhos, sem ninguém a observar-nos? Procuramos ganhar vantagem sobre os outros, se tivermos oportunidade para isso?
No tempo desafiante em que vivemos, quantas vezes nos questionamos se as nossas atitudes pessoais e profissionais são dignas de uma pessoa íntegra? Estaremos a viver uma perigosa crise de valores? Ou os exemplos que nos chegam todos os dias, muitas vezes dos lugares mais inusitados e das circunstâncias mais adversas, mostram que ainda há esperança na humanidade?
Paremos um pouco para refletir sobre o modo como temos vivido as nossas vidas e os valores que têm norteado as escolhas e as decisões que temos tomado. Bem sabemos que não é fácil no tempo vertiginoso em que vivemos, mas é possível.
Diariamente deparamo-nos com situações de egoísmo, desrespeito, intolerância, extremismo, violência, corrupção e morte, anti valores que afetam cada vez mais a interação entre as pessoas. Que papel individual assumimos nesta tarefa que é de todos? Meros observadores que se demitem da sua responsabilidade ou participantes ativos e empenhados em contribuir para a mudança efetiva da realidade que partilhamos?
Os valores humanos, que nos chegam primeiro pelo contexto familiar e social em que estamos inseridos, regulam as nossas interações e constituem um sistema de orientação interior que norteia o nosso percurso individual. A integridade é um desses valores fundamentais de vida em sociedade que nos permite permanecer inteiros e firmes na verdade, abraçando quem realmente se é, dando-nos a chave para discernir o caminho a trilhar rumo à profunda paz interior.
Sentimos alegria por fazer a coisa certa, mesmo que isso nos prejudique, ou procuramos continuamente ter vantagem perante os outros, se tivermos oportunidade de o fazer? Honramos quem somos, nesse respeito por nós e pelos outros, muitos deles desconhecidos que cruzam o nosso caminho? Ou o favorecimento pessoal dá-nos permissão para abrir exceções aos valores?
Uma pessoa verdadeiramente íntegra tem ações condizentes com o seu discurso e não se comporta de forma oportunista e egoísta. Inspira confiança nos outros. Somos todos seres vulneráveis, que tendemos muitas vezes a seguir o que a maioria faz, estando continuamente a ser postos à prova perante as influências externas. Manter essa postura vertical, de respeito pela dignidade humana, mesmo quando tudo está a desfavor, é um desafio diário.
A integridade é um dos valores humanos mais importantes, que nos permite construir relacionamentos saudáveis, caracterizados por estabilidade, confiança e durabilidade. Podermos expressar todo o nosso sentir, todas as nossas angústias e tristezas, sem vergonha de sermos humilhados, desvalorizados ou criticados, é possível se assim o quisermos.
Nos contextos profissionais, tantas vezes desprovidos de valores humanos, pautar o comportamento por respeito, honestidade e integridade potencia a produtividade, a criatividade, a motivação e cria relações inspiradoras e harmoniosas entre as pessoas.
Não é difícil identificar uma pessoa íntegra e com um carácter inabalável. São várias as características que nos permitem identificar e reconhecer alguém assim. Agir de acordo com o seu discurso; honrar os seus compromissos; demonstrar empatia e preocupar-se com os outros; comportar-se da mesma forma independentemente da situação financeira da outra pessoa; ser humilde e não usar em benefício próprio o que os outros fazem; pedir desculpa quando se erra; respeitar a dignidade dos outros qualquer que seja a sua circunstância de vida. Partindo daqui podemos refletir profundamente acerca de nós próprios, questionando-nos e repensando as nossas atitudes individuais.
Manter uma conduta caracterizada por retidão, honestidade e irrepreensibilidade, mesmo em circunstâncias adversas e desfavoráveis, assume-se como um compromisso e uma responsabilidade individuais. Que importa preservar num momento da humanidade tão desprovido de valores, tantas vezes assente nas aparências ilusórias. Independentemente do contexto de vida de cada um, todos nós, em cada dia, podemos assumir essa tarefa de sermos inteiros connosco próprios e na interação com os outros. Sem que isso seja apenas uma utopia.
PSICÓLOGA CLÍNICA
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