in REVISTA PROGREDIR | JUNHO 2020
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
Refletir sobre “o regresso” desafia-me a resignificar este conceito, uma vez que não se esvazia nos ecos ansiosos que agora todos repetimos nas nossas mentes como prenúncio do termo das restrições que as nossas sociedades inusitada e sincronicamente atravessam. “Regressar” invoca o ciclo da vida e é eternizado nas mais reconhecidas páginas da literatura Ocidental como uma metáfora da condição humana, das provações e das mais gloriosas conquistas humanas. O nosso passado, o nosso presente e o futuro que expectamos, ao regressar, funde-se no sofrimento de Ulisses sobre a sua jangada perdida à espera de encontrar o seguro solo paterno. Somos hoje errantes, perdidos na odisseia de Ulisses, afrontando perigos e superando o inesperado com todas as nossas forças. E assim ante o adverso, improvisamos outras formas de resposta, tecemos vitoriosas histórias em palcos exíguos e descobrimos que o impossível, está apenas no que ainda não acreditámos e não pusemos a realizar: ator, recria a sua história, o homem poderá, sobre o seu medo, edificar a sua poesia.
E, nisto tudo, as finanças? — perguntam-me. E esse é justamente o exercício que aqui me propus. No mundo novo, caso o queiramos sonhar e substancializar, teremos de deixar de separar as dimensões do conhecimento e da vida humana, teremos de perder o triste hábito de cultivar campos estanques e isolados, acabar com a esvaziada vaidade dos especialistas tecnocratas e abrir ao oceano, complementaridade dos saberes artísticos e humanos. Pensar sobre finanças é pensar sobre o ser humano, a sua história, o seu pensamento, a sua arte e cultura, colocando o bem universal do ser humano e de todas as espécies, acima de todos os interesses — a vida como meta primordial de toda a prática financeira Não poderemos tirar proveito deste regresso sem cortar as amarras de tudo o que nos reduz ao materialismo positivo e desgarrado da vida e das suas pulsões naturais. As finanças servem o bem-estar humano e de todos os seres vivos do planeta, ajudando na sua reorganização. A crise desencadeada pelo coronavírus convida a levantar o véu da ilusão e vomita o desequilíbrio latente em que vivíamos, asfixiados, sem sentir nem morrer de súbito, pela doença do consumo inútil e descartável, pela acumulação, pelo lixo, pela aceleração, pela indiferença à desigualdade que mitigamos com paliativos e frases vãs de encorajamento e promessas desonestas de dias melhores.
Preparar um regresso que faça jus a toda a experiências que adquirimos, no momento de crise, exige compromisso de cada indivíduo com a diferença e a vontade intrínseca de mudar e, no âmbito financeiro, exige compromisso com a humanidade. A mudança não começa a partir dos governantes, a mudança não se dá de cima para baixo, a mudança começa em nós, com a nossa vontade de criar a diferença, de não nos deixarmos manobrar pela cultura de massas, delegando, demitindo-nos da nossa própria responsabilidade. Fazer do regresso uma mudança efetiva significa também usar a nossa liberdade em prol da vida humana e do meio-ambiente. Quando deixarmos de comprar tudo, quando começarmos o processo de reduzir o nosso lixo, quando deixarmos de comprar casas em arranha-céus, quando exigirmos cidades com mais oxigénio, com mais terra, com reservatórios de compostagem, quando passarmos a respeitar a Vida, começaremos a criar condições para que a prática financeira mude. As finanças alimentam-se dos maus hábitos humanos, engordam com as nossas crenças egocêntricas de crescimento social e financeiro. Temos de escolher entre ser ricos, reconhecidos e estar vivos e em paz. Quando eu mudar, quando tu mudares, a organização institucional e financeira mudará também.
O milagre do regresso exige que, comprometidos com novas e pequenas ações, sejamos atentos e sistémicos, que desaceleremos, que nos eduquemos em novos valores e preparemos as nossas crianças para um novo mundo. O regresso não se faz por área, mas sim no abraço de interdependência de todas as áreas e dimensões da vida humana que visam salvaguardar a saúde, o sustento e o saber de todos os seres humanos, concomitantemente com o florescimento do meio-ambiente.
O regresso, retomando a metáfora literária de que todos fazemos também parte, é a nossa oportunidade de conquistar o céu, como nos sugeriu Luís de Camões na sua Ilha dos Amores, após um doloroso e vitorioso regresso que mudou a vida de Portugal e globalizou o mundo. Depende das nossas decisões pessoais fazer deste regresso o início de uma novo sonho, rumo a uma nova ordem integrada e regenerativa. É a hora!
PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA SOCIAL E SOLIDÁRIA LICENCIADA EM ESTUDOS CLÁSSICOS PROFESSORA DE FILOSOFIA
in REVISTA PROGREDIR | JUNHO 2020
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