Por Patrícia Rosa-Mendes
in REVISTA PROGREDIR | MARÇO 2020
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
O amor é o poder que instila Vida, e está por isso incontestavelmente ligado à morte. Por todo o mundo, da Grécia antiga às tribos aborígenes, as estórias e os mitos mais antigos cantam o amor, e as demandas, e tarefas que têm de ser cumpridas para o alcançar, numa imagem de um casamento perfeito entre dois seres que podem agora saciar uma sede primordial e recuperar a sensação de união perdida. Por todo o mundo, em todas as culturas, a História está pejada de grandes amores, alguns trágicos, outros mais bem-sucedidos. Em todos, os amantes, colocados perante enormes obstáculos, tinham de ultrapassar diversas provas até alcançarem o seu prémio, o amor verdadeiro. Essas provas podiam envolver a morte, caso não fossem superadas, mas se vencidas, concediam o amor eterno, a vida eterna, o ansiado “para sempre” dos finais felizes. Presente em todas está sempre este jogo de luz e sombra entre amor e morte. Para os humanos modernos como nós, a morte é um tema com o qual não gostamos de lidar, e interpretamos este padrão arquetípico como uma ameaça externa à segurança e paz idealizadas num relacionamento romântico.
Esquecemo-nos que a vida só é vida porque existe morte, e ambas caminham de mãos dadas. Mostraram-nos a morte como o fim do caminho, contudo, nada podia estar mais longe da verdade, visto que a morte é uma incubadora para a vida, uma etapa de pausa, de vazio transformador e criativo, antes de um novo ciclo de vida: é da morte do fruto que vem a semente, semente que para germinar e trazer nova vida, precisa de descansar no submundo, debaixo da terra. Ao seu próprio ritmo, no seu próprio tempo, algo novo será gerado e nascerá, do mesmo modo que no seu próprio tempo, o que já não tiver de ser definhará e morrerá.
A existência pede tempo, e pede também o equilíbrio do dar e do receber, a troca. Damos e recebemos continuamente, e tudo o que a vida nos traz tem um valor de troca, um preço. Não estamos conscientes desta verdade, em especial quando somos demasiado jovens, ou ainda passamos pelas iniciações da vida. E, contudo, intuímos que o amor é um tesouro, e procuramo-lo com a ideia de que ao encontrar esse tesouro ele vai nutrir-nos para todo o sempre, satisfazer todas as nossas vontades e desejos, curar as nossas feridas e completar os nossos vazios.
O que geralmente não fazemos é ponderar o nosso papel em tudo isto: preferimos ignorar o que a vida nos pede em troca. Temos de estar preparados para deixar morrer em nós aquilo que já não serve essa nova vida, ou que é demasiado pequeno para ela. Temos de nos permitir desembaraçar o novelo interno das nossas ilusões e expectativas, e descobrir aquilo que tem de morrer. O que podemos dar à morte, para que mais vida possa surgir? O que é que tem de morrer em nós para que o amor possa viver? Estas são perguntas difíceis, que pedem respostas ainda mais difíceis.
Os artistas — em íntimo contacto com o mundo da Alma, esse universo de símbolos e imagens, rico em nuances, fértil em questões, hábil a escapar a rótulos e limitações — sabem bem o que o amor tem em comum com o processo de criar algo, e conhecem os meandros desse esgotante labirinto criativo. Mas quem cria, e quem ama, tem de o fazer a partir da alma, “núcleo vital, misterioso e selvagem” de cada indivíduo. É a partir desse espaço que conseguimos verdadeiramente amar: o que há em nós e no outro, o belo e o não belo, com a coragem de permanecer com tudo o que somos e com tudo o que o outro é, capazes de soltar o que já não tem lugar.
A grande sabedoria desta estória Inuité recordar-nos que o amor verdadeiro conhece as exigências deste ciclo de vida-morte-vida, renovando-se e reinventando-se continuamente, num processo criativo sem fim.
Constata-se que este processo pede três coisas, essenciais a este amor vivo.
O estar disposto a aprender e a crescer, descobrindo novas formas de ser, e de se relacionar. A tenacidade para percorrer o caminho, que se mostra frequentemente difícil, rochoso, cheio de altos e baixos, esgotante, e que nos deixa sem recursos. Curiosamente, é quando já não nos restam mais defesas, escudos e muralhas, que ficamos realmente nus, transparentes perante nós e perante o outro, prontos a ver e a escutar com o coração, compassivamente, para lá das ilusões infantis.
Finalmente, a paciência para aprender, com o tempo, a profundidade do amor. A paciência para nos conhecermos, para compreendermos o que nem sempre é visível, e para confiar no próprio processo criativo. Acima de tudo, pede essa coragem extraordinária do coração: estar disposto a morrer e nascer de novo, uma e outra vez, como parte do próprio fluxo de vida.
TERAPEUTA TRANSPESSOAL
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in REVISTA PROGREDIR | MARÇO 2020
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