Por Carlos Fernandes
in REVISTA PROGREDIR | SETEMBRO 2014
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
Pois: é que ocorre que a realidade não é real. A farmácia da Filosofia – ou na mercearia, como preferirem – vende tudo o que é necessário para suportar a realidade. A serenidade, a imperturbabilidade, os determinismos (à escolha), as verdades eternas, a racionalidade tout court, a ideia de constante de constante progresso para melhor. Ou lembrar Popper (que diferencia, e bem), o mundo A (a realidade material), o mundo B (o processo da inteligência), o mundo C (os produtos da inteligência – a chávena de café, por exemplo, ou o submarino); e, para quem quer, porque não, o mundo D (da espiritualidade – que talvez seja um B+C). Com estes suplementos vitamínicos – mais reais do que a própria realidade (que a grande maioria desconhece), a ordem cósmica fica estabelecida e há lugar à Alegria, ao contentamento.
A realidade vulgar, para certos filósofos, sublinha Fernando Savater, é uma espécie de presunto de Jabugo, demasiado saboroso e salgado: há que convertê-lo em presunto York: afinal, a distinta diferença entre os produtos da terra e o resultado da culinária: aqueles produtos da terra transformam-se em três estrelas Michelin. A travessia entre o mundo A e os cem passos percorridos através do B e servido à mesa (exigente) o C. Provocando enorme Alegria, intenso contentamento, lágrimas que também podem ser de Prazer. E. no entanto, a realidade vulgar, aponta a fome como um sarilho. Não impedindo a alegria. A saber: cumprido o processo de transformação da realidade vulgar em realidade real a realidade cruel torna-se em suporte de contentamento estilizado, sublime, aromático, embora ainda desassossegado (repetirei o pitéu três estrelas? Estarei por aqui no amanhã cantado?
Por isso, o escândalo filosófico perante a alegria (já reportado em Alegria I, Revista Progredir, Julho 2014): então não é que perante a realidade, tal como é oferecida, dura, cruel, insensível – as múltiplas Faixas de Gaza, as múltiplas Israel não aceites – não é que, apesar dela, da realidade, a alegria manifesta-se, expõe-se, não sente falta de nada e, pelo contrário, só se queixa do que sobra? Como pode a alegria incorrer em tão cega vulgaridade?
Esta capacidade – em busca de explicação – em tirar da realidade, para obter da vida, este suplemento subjetivo, o contentamento, a alegria, habituou-se a ganhar (sempre) às intrigas, ódios e invetivas.
É por isso que reconhecer, na realidade, uma outra, é, deve ser, um exercício possível e desejável. Simplesmente: trate disso.
PROFESSOR, ESCRITOR, CONFERENCISTA
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in REVISTA PROGREDIR | SETEMBRO 2014
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