Por Emídio Carvalho
in REVISTA PROGREDIR | MARÇO 2013
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
Conseguimos maltratar-nos bastante quando acreditamos que a vida deveria ser um mar de rosas e tudo deveria funcionar a nosso favor. Imaginamos um mundo ideal, prazenteiro, onde todos se comportam como nós queremos. É um mundo surreal.
O ser humano, ao longo dos últimos milhares de anos, tem criado, na sua mente, uma realidade incongruente com a vida.
A realidade é tornada romântica pela mente. Imaginamos companheiros felizes e responsáveis que partilham as suas vidas connosco, filhos exemplares e bons alunos, empregos onde somos valorizados e que nos preenchem, férias paradisíacas, pais iluminados que nos compreendem, patrões simpáticos que apoiam todas as nossas decisões, políticos honestos que trabalham para a população que servem, líderes religiosos moderados e sábios, vizinhos seguros em quem podemos confiar, serviços públicos infalíveis. Enfim, criamos uma versão do mundo que não existe.
Talvez aqui resida a principal maldade: não querer ver a realidade tal como se apresenta.
Nesta realidade imaginada há apenas passarinhos que chilreiam, cães amigos dos seus donos, amantes carinhosos, alimentos nutritivos, intervenções cirúrgicas que salvam temporariamente uma vida, pores-do-sol belos e amigos que nos compreendem.
A verdade é que também há tsunamis que apagam milhares de vidas em minutos, vespas que ferram, abutres que se alimentam de animais mortos, patrões que levam uma empresa à falência, maridos traidores, cães que mordem, líderes desonestos, bactérias assassinas.
O mundo não é um local agradável, é um local onde a vida acontece de mil e uma formas. Um ciclo continuo de criação e destruição.
O ser humano, se tiver sorte, irá nascer, crescer, adoecer, entrar em declínio e morrer. Se tiver muita sorte irá nascer e morrer sem passar por todas estas transformações.
Criámos esta ideia absurda de como a vida deveria ser. Não como é, mas como deveria ser. E a vida nunca acontece como deveria: acontece como acontece, sem a nossa autorização.
A primeira maldade que cometemos é querer controlar aquilo que não se controla jamais: a vida.
Muitas pessoas afirmam que se fizermos isto iremos ter aquilo. Tentam impingir uma fórmula que resolve qualquer drama. Um inferno! Há maldade sempre que afirmo que tens que fazer algo, ou deverias fazer algo, para estares bem. É assim que a maldade persiste. Tens que estar bem para eu poder estar contigo. Deverias estudar mais para eu gostar de ti. Tens que ser arrumado para eu me sentir bem perto de ti. Deverias ter um propósito para ser feliz.
Ter a pretensão de controlar a vida é um absurdo! Dizem-nos para termos pensamentos positivos e a nossa vida será positiva. Na minha experiência isto não funciona. Pelo simples facto que não controlamos os pensamentos. Os pensamentos simplesmente surgem na mente. Não penso, sou pensado. E a única forma de eliminar os pensamentos que dizem que não presto, ou que o mundo é um lugar perigoso, ou que os homens não deveriam ser infiéis, ou que os amigos deveriam compreender-nos, é questionando cada pensamento que sinto mal-estar. E questiono cada pensamento para ter paz, nunca para ter razão. Não é possível ter paz e razão ao mesmo tempo.
Ensinam-nos a ter objetivos na vida, e a segui-los. Mais uma forma de sofrer. Criamos uma expetativa. Se as coisas não correrem como planeio ficarei desapontado. Um horror! Mas posso criar objetivos e ficar num estado de curiosidade. Talvez as coisas aconteçam como planeei ou talvez não. Confio na vida a cem por cento. Não sei o que é melhor. A vida sabe. E o melhor é o que está a acontecer agora. Quer goste ou não, o que está a acontecer agora é a única realidade possível.
Nesta realidade haverá sempre pessoas que rotulamos de boas e más. Bonitas e feias. Certas e erradas. Mas se para mim é importante a bondade, a beleza e o que está certo, poderia ser o exemplo daquilo que espero dos outros?
Jamais conseguirei controlar os outros. Não é possível. E se tenho que parar de ser quem sou para que outros gostem de mim, então os outros irão gostar de uma máscara e nunca de quem sou realmente. Muita maldade.
E apesar de comummente associarmos a maior maldade humana a situações como a guerra e a fome, posso afirmar, que é numa zona de guerra ou de fome que podemos ter a experiência do maior amor que um ser humano nutre por outro. É nas situações de maior crueldade que o melhor que há em nós surge naturalmente.
E quando procuro a bondade, como trato aqueles que são antipáticos? Ou os que maltratam animais? Como trato um violador? Ou um pedófilo? Como trato aquele que governa e se deixa corromper?
Temos muita dificuldade em separar o ser humano da ação cometida. A criança deixa cair um copo e não dizemos para ter mais cuidado ao segurar o copo, preferimos dizer “trapalhão” ou algo ainda mais maldoso. O violador comete um ato extremo de violência, e irá pagar por isso. E quem é a pessoa por detrás deste violador? Que história de vida terá? Não digo que a violação é algo positivo (eventualmente podemos descobrir que pode ser, se estivermos despertos), mas julgo a violação. E antes de julgar aquele que maltrata os animais, ou o pedófilo, ou o toxicodependente, ou o traidor, posso permitir-me mergulhar dentro de mim e descobrir-me.
Onde é que já me traí e traí outros? Talvez quando disse sim e queria dizer não. Ou talvez quando fiz algo para agradar a outros e não por querer mesmo. Onde é que me violo e violo outros? Talvez quando cedo a um pedido que não pretendo cumprir. Ou talvez quando me obrigo a fazer um frete. Onde é que não me respeito, e não respeito os outros? Talvez quando permito que outros se aproveitem de mim. Ou talvez quando fico zangado porque não gosto da opinião.
E é curioso como valorizamos e desvalorizamos as ações humanas de acordo com os nossos interesses. Um exemplo disto é a mentira que a amiga conta para não ir tomar café connosco (errado) e a “mentirinha” que contamos para não magoar o amigo (certo). Mentira é mentira. Traição é traição. Não caias na asneira de desvalorizar as “asneiras” que fazes para te sentires acima de outro.
Outra maldade que cometemos com frequência chama-se “tolerância”. As pessoas julgam-se serem boas porque toleram outras. Em realidade tolerar outro é colocar-se acima dele. Quando tolero o que estou a afirmar é que estou tão acima de ti que permito a tua existência. Chamo a isto arrogância refinada. Prefiro aceitar-te tal como és, torna a minha vida mais pacífica.
E a única maldade que encontro é aquela que luta com a realidade. E perante a realidade presente irei apenas questionar se há alguma coisa que possa fazer para a alterar. E se há, faço-o. E se não há, aceito-a.
Haverá maior maldade que querer que outros mudem para eu estar bem?