
Por Marine Antunes
in REVISTA PROGREDIR | ABRIL 2013
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Esta ilusão infantil do tempo eterno pode desaparecer com a mesma facilidade em que se acredita nele. O rotineiro beijo de boa noite e todas as nossas comuns normalidades trazem-nos a tranquilidade e o engano de que o tempo passa em compassos longos quando, na verdade, deparados com a realidade mais cruel, percebemos que o tempo segue mais rápido do que um piscar de olhos.
E de repente temos treze anos e começamos a ter medo. Ao descobrirmos que temos cancro, todas as certezas construídas e profissões do futuro decididas, estremecem. De início, achamos uma tolice tanto sonho, depois percebemos que nunca fez tanto sentido desejar o que quer que fosse. Mesmo com o caos instalado e estando, frente a frente, “com o inimigo”, percebemos que os sonhos continuam a depender apenas de nós. Sem estarmos suficientemente prontos (nunca se está preparado para a guerra mesmo que a armadura seja refinada) aceitamos o desafio que a vida nos propõe – descobrir, por nós próprios, que não somos eternos, que é tão fácil desaparecer.
Tantas vezes, ouvimos dos mais escandalizados, esta comum exclamação: “Eu não seria capaz de passar por isso!” Automaticamente, ao ouvir esta certeza ilusória, só nos ocorre perguntar: Amas alguém?
E é aqui que se entende que o “eu não sou capaz” não faz sentido. Mesmo com muito medo da luta, o medo de não voltar a ver quem amamos é tão superior que, confrontados com o cancro ou outro qualquer obstáculo, não duvidamos que queremos e que temos de tentar. Por nós mas sobretudo pelos nossos amores.
Depois do susto, depois do medo de não voltar a ter o nosso beijo de boa noite, depois de percebermos que nem tudo se dispõe porque o desejámos ou planeámos, passamos, inevitavelmente, a admirar o não tangível da nossa vida. O sorriso que o nosso irmão gentilmente nos cedeu, a piada que saiu e que animou as nossas visitas, o dia que está bonito, o beijo de boa noite que nos recorda o outro, que já não está connosco.
Que privilégio é ver a vida escassear e ter vontade de a agarrar com a mesma firmeza antiga, aquela em que acreditámos ser possível ter todas as profissões do mundo.
Menos prepotentes, menos amargos, menos agarrados racionais, podem ainda ser mais bem-dispostos e felizes. Perder tempo com tudo aquilo que não nos faça sorrir ou que não nos provoque uma sensação cheia de vontade de viver, passa a fazer tão pouco sentido como desistir, por isso, depois do sobressalto torna-se tão mais fácil cumprir a velha promessa: decidimos ser felizes.
Mesmo que o sono traga com ele os pesadelos do costume, podemos sempre substituir a revolta por um pensamento que, decerto, nos tranquilizará: “O que posso tirar daqui?”
E é nesta interrogação que descobrimos que, em qualquer adversidade, passamos a conhecermo-nos melhor, a tratar o medo por tu, a virar a cara ao pessimismo, a fazer do tempo um tesouro raro, a gostar da nossa companhia e a desfrutar, o melhor possível da companhia dos outros.
“O que posso tirar daqui?”, Posso sempre tirar o cancro de mim e se eu quiser, tirar o melhor dele.

Do Projeto Cancro com Humor
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REVISTA PROGREDIR | ABRIL 2013