
in REVISTA PROGREDIR | JUNHO 2018
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A coerência carateriza-se por uma sincronia entre o que o indivíduo sente e pensa e a forma como age e se comporta. Esta sincronia entre o pensar/sentir e o agir/comportar é determinada pelo locus de coerência interior, ou seja, quando o indivíduo age em conformidade com os valores pelos quais se rege, cria-se uma perceção de «verdade» na relação entre o seu comportamento e o seu «eu interior».
Por exemplo, se um sujeito valoriza a solidariedade social, poderá retirar um profundo sentido de realização pessoal ao exercer algum tipo de trabalho voluntário na comunidade. Este comportamento aproxima a realidade do indivíduo dos seus valores, contribuindo para acentuar uma sensação de continuidade entre o que pensa e o que faz.
A perceção de se ser coerente em relação ao seu «eu interior» tem repercussões nas escolhas e opções que cada indivíduo faz relativamente às dimensões fundamentais da vida, sendo evidentes algumas vantagens deste locus de coerência interna, nomeadamente a possibilidade de criar e desenvolver relações sinceras e promotoras de harmonia, já que as escolhas de vida são feitas em função dos valores que o individuo privilegia e que contribuem para o seu bem-estar.
Um indivíduo que valorize como pilar fundamental a liberdade, poderá optar por direcionar a sua vida profissional para a criação do próprio negócio, condição que lhe permitirá tomar decisões e optar pelo rumo que pretende imprimir à gestão. Se o mesmo sujeito optar por uma profissão sem autonomia, na qual dependa permanentemente das decisões de terceiros, onde não possa imprimir a sua criatividade pessoal, provavelmente sentir-se-á pouco realizado e sem possibilidade de crescimento profissional.
Agir em conformidade com o locus de coerência interior é um fator potenciador de saúde mental, que permite alcançar maior conhecimento de quem é, do que precisa, do que gosta e de para onde se quer dirigir.
Numa análise ao impacto social, a coerência revela ser uma caraterística claramente compensatória, já que tendemos a considerar como mais credíveis as pessoas que consideramos agirem em função do que pensam. Também valorizamos a informação que recebemos de pessoas consideradas credíveis, em detrimento da que nos é veiculada por outras fontes.
Mas nem sempre é fácil ser verdadeiro e agir em conformidade com o nosso eu interior. Existe, efetivamente, um preço a pagar pela ditadura da coerência imposta pelos outros, ou seja, pelo locus de coerência externo. Poderemos sentir, em certos momentos, uma pressão exterior dos que nos rodeiam para que mantenhamos o mesmo rumo de vida, quando este já não espelha o nosso genuíno «eu interior».
A experiência de vida, o percurso pessoal e o contexto vivencial específicos conduzem a mudanças que se podem refletir no paradigma de valores pelo qual nos regemos, no que acreditamos ou no que sentimos. E, caso sejamos coerentes e verdadeiros com quem somos, em cada momento do nosso percurso, iremos inevitavelmente, desenvolver atitudes e comportamentos diferentes dos que tínhamos em etapas de vida anteriores.
Por exemplo, um apreciador da alimentação rica em petiscos pouco saudáveis e do convívio social ao redor da mesa pode, a determinado momento, desenvolver valores que se sobreponham aos previamente instalados, priorizando por exemplo a preocupação com a saúde, optando por um regime alimentar mais saudável e pela prática diária de exercício físico. Esta mudança, aparentemente simples, na hierarquia de valores de um sujeito pode suscitar no grupo social que mantém os comportamentos anteriores (organização de convívio à volta dos petiscos) movimentos de apoio e encorajamento ou, pelo contrário, de crítica, rejeição e distanciamento.
Estas mudanças interiores, que se repercutem na exteriorização de novas facetas do nosso «eu interior» podem ser alvo de crítica social por parte de quem nos rodeia e possui expetativas acerca da constância do nosso comportamento, nomeadamente amigos, familiares ou mesmo colegas de trabalho. Essa crítica, reveladora da expetativa de uma coerência estática, formatada à medida da leitura que o grupo social faz de cada indivíduo, não contempla a mudança interna inerente à idiossincrasia do percurso de cada um.
De facto, podemos afirmar que existe um preço a pagar por nos assumirmos coerentes na medida do nosso locus de coerência interior. Esta coragem de agirmos com verdade implica aceitar lidar com as desilusões dos outros relativamente a nós, com os juízos de valor e com a incompreensão.
A coragem de ser verdadeiro, de agir em coerência com o que se valoriza, sente e pensa, implica lidar com o medo ser rejeitado pelos outros, de ser alvo de juízos de valor considerados injustos, de sentir que se deixou de pertencer a um determinado meio onde antes nos sentíamos parte integrante.
Esta coerência interna é percursora de crescimento pessoal, feito inevitavelmente de escolhas por vezes difíceis, mas que nos aproxima de um estado de equilíbrio e do conhecimento mais profundo de quem efetivamente somos.
No reverso da medalha, é de extrema importância mantermos presente que os outros também percorrem um caminho pessoal, único, repleto de experiências e circunstâncias ímpares. E, como nós, também os outros, mesmo os que conhecemos há muito tempo e de quem esperamos, irrealisticamente, uma constância absoluta, vão crescer, aproximar-se do seu «eu interior» e mudar de convições, atitudes e comportamentos.
Esta aceitação da mudança interior dos outros, que não deve de forma precipitada avaliada como incoerência, poderá ser facilitadora do desenvolvimento pessoal e da felicidade destes. A segurança que encontramos na coerência que exigimos aos outros, pode, em muitos casos, ser contrária ao crescimento pessoal de quem gostamos.

PSICÓLOGA CLÍNICA
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