Por Daniel Matias
in REVISTA PROGREDIR | DEZEMBRO 2021
(clique no link acima para ler o artigo na Revista)
Por vezes, contudo, esta dualidade necessária à vida é interrompida, de forma momentânea ou constante. Falamos assim de uma clínica do trauma. Para Freud, o trauma caracterizava-se pelo seu excesso, isto é, algo seria traumático para o psiquismo na medida em que excedia as capacidades de contenção deste. Esta é uma compreensão não aplicável apenas à clínica mas também ao social. Vivemos tempos agrestes, de profunda mudança de paradigmas, que assim como poderão potenciar mudanças benéficas, são igualmente tempos potenciadores de trauma. Vivemos de forma mais óbvia num tempo de fronteiras, da exploração e reconsideração destas, dos termos através dos quais nos endereçamos na mutualidade da comunicação.
Seria o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, discípulo de Freud, quem melhor entenderia as dinâmicas do trauma psíquico. Para Ferenczi, quando o trauma excedia as capacidades da mente, esta sofria um colapso e a pessoa perderia as noções concretas de tempo e espaço. Para se preservar, a pessoa sai da lógica humana, fica além do tempo e espaço. Procura o estatuto do divino: como Janus, observa de fora a actividade dos comuns mortais, ficando toldada, contudo, na possibilidade de exercer a dupla visão sobre a sua própria vida.
Desta forma, a pessoa habita o limbo, o espaço e tempo indeterminados. Para sobreviver à dor, a pessoa cria a dualidade humano-inumano. É esta, aliás, a resposta à dor que a literatura soube compreender: Jekyll e Hyde, assim como Frankenstein e o seu monstro, entre tantos outros exemplos. A dualidade espelha a barreira maciça entre aspectos da personalidade. Imaginemos ilhas que progressivamente vão deixando de ser arquipélago, as suas pontes erodindo-se, perdendo as ligações entre si. A deriva implica a radicalidade do desamparo: a energia, que antes poderia ser empregue para construir algo – uma profissão, uma relação – fica a comando da estagnação, de uma paralisia do sentido. O tempo é agora só presente, um presente que subsiste sem se transformar em história. Assim, Janus encontra-se vendado.
Como desvendar o tempo do humano? Recordemo-nos que o monstro de Frankenstein almejava a convivência, a comunhão com outros. O inumano, por mais hediondo que se apresente, tem a sua parcela de humano. Se o monstro na sua superfície implica o asco, muitas vezes encontramos no seu cerne uma capacidade criativa sem paralelo. A arte revela-nos que é no encontro, ou reencontro, do humano com o inumano que uma experiência mais plena de vivência será possível.
É esse encontro que se verifica numa psicoterapia centrada no trauma. As experiências do paciente que não alcançaram a representação, que não foram passíveis de serem entendidas e integradas numa lógica do tempo humano são compreendidas na sua sensorialidade pelo psicoterapeuta. É construído um caminho, com o seu tempo próprio, em que através do encontro se começam a construir novas pontes entre as ilhas que formam a mente, para que se verifique mais arquipélago.
É esta, aliás, a dualidade da psicoterapia: enquanto uma das suas faces olha para a ciência a outra olha para a arte. E será no momento de encontro que poderá surgir a surpresa, alimento de vida.
PSICÓLOGO CLÍNICO DOUTORADO PELA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
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in REVISTA PROGREDIR | DEZEMBRO 2021
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